Nas histórias de encantar de todas as tradições – verdadeiro património imaterial da humanidade – há inúmeras referências ao papel decisivo de animais minúsculos, quase desprezíveis que, num momento crítico, salvam o pequeno herói ou a pequena heroína.
Um peixe traz o anel perdido no fundo das águas à princesa que desespera de o encontrar. Pássaros transportam mensagens entre amantes separados. Um grilo faz o papel da consciência que o menino de madeira, Pinóquio, não tem. Milhões de formigas trabalham toda a noite, colhendo e empilhando os grãos, tarefa que a desventurada menina tinha de cumprir até à alvorada sob risco de perder a vida…
A Psicologia já se debruçou muito sobre este tema, sobretudo a partir da obra referencial de Bruno Bettelheim, Psicanálise dos Contos de Fadas, e o estudo da simbologia também encontra aqui tesouros sem fim, a que todos podemos aceder sem nunca nos cansarmos. Até porque esta tradição, a das histórias de encantar, é verdadeiramente inspiradora.
O exemplo mais recente foi o de uma jovem amiga. Divorciada, em situação económica semelhante à de quase todos os jovens deste país –precária e a recibos verdes –, com um carro muito velho mas a filha num colégio de luxo (mensalidades pagas pelos avós paternos), deu de caras com uma brigada da GNR à porta do referido estabelecimento de ensino, à hora em que ia levar a criança.
O coração caiu-lhe aos pés. O selo do carro fora de prazo, o farolim esquerdo a pedir reforma urgente, e um sem fim de pequenos detalhes, candidatavam-na directamente a uma soma de infracções que poderiam levar-lhe metade do seu rendimento mensal. Sem pensar duas vezes, e sempre com o motor a trabalhar, acenou ao guarda que se encontrava mais perto, e, abrindo a porta do carro disse à filha “vai embora, já!!”. O guarda aproximou-se e sem o deixar sequer abrir a boca ela pediu-lhe:
– Bom dia senhor agente, ajude-me, senhor agente, acho que tenho um rato dentro do carro. Ora oiça lá.
Pela expressão do guarda passaram várias emoções.
– Desculpe, minha senhora – contestou ele, muito sério – mas não estou aqui para saber de ratos…
– Eu sei, mas… não ouve? Se calhar está no motor… o pior é se está debaixo do tapete, cá dentro. Oh, que horror!! É que por cima deste rrrrrrrrrrrrrr do carro a trabalhar, estou a ouvir um krrriiiiiiiiii, umas vezes mais alto… agora, agora!!! Ouviu o krrrriiiii???
Automaticamente, o agente curvou-se e espreitou para dentro do automóvel.
– Não ouço nada, nem estou aqui para …
– O senhor agente se calhar acha isto ridículo mas eu morro de medo de ratos. Por favor, não se importa de espreitar debaixo dos bancos… eu saio, eu saio!
– O quê????
– Sim, para o senhor me levantar o tapete, a si não lhe vai custar nada… tenho a certeza que… ou então dentro do motor, imagine que o rato está dentro do motor, coitado do bicho… vou abrir o capô, importa-se de ir ver?
– Minha senhora! – agora o homem estava vermelho de fúria – eu faço parte de uma brigada de fiscalização de trânsito…
Ela interrompeu-o:
– Se o senhor agente não quer, podia pedir a um dos seus colegas …?
A cena estava a dar frutos. Pelo canto do olho, ela reparou que os outros, que até então seguiam a conversa com ar de gozo, olharam imediatamente para o lado e puseram-se a mandar parar os carrões de luxo que continuavam a despejar crianças à porta do colégio.
– A senhora ponha-se mas é a andar!! Um rato???!! Desapareça-me da frente! – o homem estava, naturalmente, muitíssimo indignado. Ela não esperou duas vezes.
Mais tarde, porém, quando reviveu a cena, morta de riso e com uma sensação de alívio imenso, fez uma pequena meditação:
– Agradeci à “alma-grupo” dos ratos. Pela inspiração e pela ajuda.
– Mas tu não tens medo de ratos?
– Depende. Não me agrada partilhar com ratos os mesmos sítios por onde ando. Mas respeito-os e, em certos casos, acho que até lhes poderia vir a ter afecto. Acho que é por causa das histórias de encantar e dos romances onde os prisioneiros em masmorras horríveis, ou as meninas desvalidas em sótãos pobres, fazem amizade com eles.
Nota: “Alma-grupo” é um atributo espiritual que muitas tradições esotéricas atribuem a “famílias” de animais, plantas, minerais por oposição à crença de que só o ser humano, na sua espiritualidade, possui alma individual.
[Manuela Gonzaga é escritora. Mestre em História pela Universidade Nova de Lisboa, publicou, entre outros, a biografia de António Variações, a de Maria Adelaide Coelho da Cunha, e uma coleção juvenil, “O Mundo de André”, com a chancela do Plano Nacional de Leitura que já vai no 3º titulo. Visite o blog de Manuela Gonzaga em http://www.gonzagamanuela.blogspot.com/]
Manuela Gonzaga escreve de acordo com a antiga grafia.