Literatura

O Tempo dos Milagres: Um abraço, apenas um abraço

Ela pediu-me um lenço. Estava sentada no banco de um jardim, perto de um canteiro de rosas a florirem na Primavera de há um ano atrás. Procurei, mas não tinha.
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Por Manuela Gonzaga

Ela pediu-me um lenço. Estava sentada no banco de um jardim, perto de um canteiro de rosas a florirem na Primavera de há um ano atrás. Procurei, mas não tinha. Andava a passear o Timóteo, pouco mais levava do que a trela e os inevitáveis saquinhos de plástico, mas houve qualquer coisa na voz dela que me fez parar para acrescentar que no quiosque, ali a dois passos, lhe dariam um guardanapo. Então, percebi que tinha os olhos cheios de lágrimas. Era tão nova. Quinze, dezasseis anos? E estava desesperada. 
 
– Está mesmo com ar de quem precisa de um lenço e muito rapidamente – acrescentei, sorrindo-lhe. Ela abanou a cabeça com um ar de criança perdida. Durante alguns segundos, contrariei o impulso, mas depois, felizmente, o coração mandou mais do que a razão e, dirigindo-me a ela, abracei-a.

Ficámos assim um pouco, ela sentada, com a cabeça no meu peito, agora a chorar abertamente, eu, de pé, a embalá-la. Ela sentia-se a cumprir uma espécie de maldição familiar que a levava, disse e – “tal como a minha mãe” – a afastar de si todas as pessoas de quem verdadeiramente gostava. Ela tinha o peito a rebentar sob o torno da sua irredutível solidão adolescente. Ela, nas suas próprias palavras, não ia conseguir ser feliz. Nunca. Não importa o que eu lhe disse, embora algumas das coisas lhe tivessem devolvido o sorriso e estancado o choro. 

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Falei-lhe, por exemplo, na impossibilidade das “maldições” familiares, porque cada ser é um mundo, e cada mundo um mistério – uma frase recorrente de Viana da Mota, que guardei desde a mais remota infância já que a minha mãe gostava de a repetir, discípula como foi do grande Mestre. Falei-lhe também na vida como uma viagem, cuja duração não conhecemos e cujo destino é a própria viagem:

– Muitas vezes, as pessoas não se afastam umas das outras, ou umas às outras. Tiraram foi bilhetes para destinos diferentes. Têm de sair mais cedo, mudar de comboio ou de avião, partir para outras paragens. 
 
Falámos durante algum tempo, e a certa altura ainda rimos um bocado. Depois, o telefone dela tocou, e era uma amiga que vinha ao seu encontro. Então foi ela quem me abraçou e deu dois beijinhos, garantindo-me que já estava bem melhor.

Nunca a esquecerei. De certa forma, este encontro permitiu-me fazer as pazes comigo mesma. É que uma vez, há muitos anos, vi uma criança sentada nas escadas do elevador de Santa Justa, com o olhar trespassado por uma dor indizível. Um miúdo de uns oito, nove anos. Pedia esmola de mão estendida, como quem pede à Morte que o levasse. Por momentos fiquei ali, fulminada, a pensar o que poderia ou deveria fazer. Queria chegar junto dele e, simplesmente, passar-lhe o braço pelos ombros enquanto deitava o dinheiro no copinho de papel que ele empunhava na mão morena e suja, não fosse o seu proprietário, um desses romenos das redes de escravatura, estar a espreitar o negócio. 

Não fiz nada absolutamente nada, e ainda hoje me dói a minha inércia. Não fiz nada porque não sabia como e o que fazer. De modo que lhe virei as costas, levando-o comigo e ainda hoje essa criança habita o meu coração. Esta menina, de quem não fugi, permitiu-me aliviar um pouco a mágoa da minha impotência. Quando a abracei, fi-lo simplesmente por ela, na mais completa indiferença do que me poderia acontecer. 
 
Gostaria muito de saber amar sempre assim. De graça. Sem escolha nem medida. Mas a maior parte das vezes, e falo por mim, essa completa e perfeita forma de amar é demasiado alheia aos nossos próprios e pequenos corações. 


Manuela Gonzaga é escritora. Mestre em História pela Universidade Nova de Lisboa, publicou, entre outros, a biografia de António Variações, a de Maria Adelaide Coelho da Cunha, e uma coleção juvenil, “O Mundo de André”, com a chancela do Plano Nacional de Leitura que já vai no 3º titulo. Visite o blog de Manuela Gonzaga em http://www.gonzagamanuela.blogspot.com/ ou o Facebook da autora em https://www.facebook.com/manuelagonzaga.

 

[Manuela Gonzaga escreve de acordo com a antiga grafia]

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