Estamos perante a mais perturbadora interrogação que o homem se coloca desde o fundo dos tempos, e respectivas as respostas que, em contexto medieval, lhe foram dadas num tempo muito longo. Ou seja, num tempo que, no caso deste obra, e para melhor enquadramento, ultrapassa as próprias balizas da época em si, pois não descartou as heranças pagãs ou clássicas e o prolongamento nos tempos futuros, pelo menos até ao século XVIII.
Interrogando documentos e fontes várias, nomeadamente na literatura sagrada e profana; vestígios materiais – tumbas, lápides funerárias, necrópoles – José Mattoso revela-nos um imaginário poderosamente alicerçado em práticas religiosas e crenças sobre o Além, e devolve-nos um fresco perturbante, mas também comovedor, sobre a vida perante a morte na Idade Média, sobretudo em contexto peninsular ibérico.
Que crenças, que pavores, que arrimos, alimentavam os nossos antepassados acerca dos omnipresentes seres invisíveis que povoavam o Céu, o Inferno e outros lugares do Além? Que lugares outros eram esses, que originaram cartografia de género, permitindo “visualizar” o Outro Mundo, e daí deduzir as suas interferências no universo visível? Que “estratégias de defesa ou captação de poderes alheios” esse topos inspirou? E, consequentemente, como se formou e evoluiu todo um sistema de crenças na vida para além da morte, com as suas coerências e as suas incoerências, e as suas práticas e cultos e crenças, muitas das quais enraizadas noutros tantos atavismos de raiz pagã, que sobreviveram às tentativas de controlo e de reformulação por parte das autoridades religiosas e políticas? Em suma, nos tempos medievais, de que se fala quando se fala em mortos, morte, e respectivo culto?
José Mattoso é um historiador português de referência mundial, e um escritor notável. Um livro dele, seja qual for, é uma privilegiada fonte de conhecimento e de prazer. Não é este o espaço, nem será este o tom para endereçar a crónica aos seus pares que já o conhecem, seguem e cultuam mesmo que sejam de outras áreas científicas. Mas este é, seguramente, um lugar onde o leitor “comum” pode marcar encontro. Sobretudo leitores de romances que dizem não apreciar outros géneros, pois que o romance lhes ocupa todos os momentos dedicados á leitura. E também, ampliando a generalização, para aqueles que “adoram” a Idade Média na sua abrangência secular.
Pois bem: este livro é-lhes destinado. Não sendo, decididamente um romance, é, num certo sentido, melhor ainda do que a maior parte deles, já que a história que propõe não acaba numa única leitura, antes a estimula, permitindo perceber aspectos que de outra forma permanecem num limbo ou numa zona a que raras vezes o leigo tem acesso. Isto, porque Poderes Invisíveis se lê e relê com um prazer imenso. Sendo um ensaio produzido em contexto académico, é de compreensão imediata para quem tem hábitos regulares de leitura, podendo ajudar muitos leitores a ir mais longe do que lhes é costume, ao introduzi-los nos arcanos do pensamento simbólico medieval, práticas rituais, espíritos, assombrações, Satanás, céu, inferno e purgatório, ritos de passagem, doutrinas e sufrágios, termos de sucessão, necromancia e até poesia trovadoresca que sobre a morte produziu “prantos fúnebres”.
A obra propõe uma viagem que se pode fazer lentamente, capítulo a capítulo. Por exemplo, “Amor e Morte” na Idade Média; “Satanás, o Acusador”, desvendando segredos, pecados, infracções, mediadores e penitências; “Imaginário do Além em Gil Vicente”. Ou seja, em leitura mais ou menos pausada, novos caminhos que podem vir a suscitar-nos a mais saudável das curiosidades, fruto do interesse em alargar o campo de conhecimento, esclarecendo mitos, dissipando alguma dúvidas e fantasias sobre uma época que continua a suscitar nostalgias e encantos.
Contra-indicações: obra eventualmente pouco aconselhável a leitores muito eventuais, logo com poucos hábitos de leitura. Requer alguma vontade de enriquecer o conhecimento. Pode ser consumida lentamente. Pode ler-se “aos saltos”, já que os capítulos não são sequenciais. Pode também despertar uma insuspeita paixão pelo género.
Ficha Técnica: MATTOSO, José, Poderes Invisíveis, O Imaginário Medieval, Lisboa, Temas & Debates – Círculo de Leitores, 2013.
[Manuela Gonzaga escreve de acordo com a antiga grafia]