A casa era deliciosa. Sala grande, dois quartos, um corredor, lindíssima cozinha, muita luz, pátio interior, duas frentes, uma para outra fileira de casas exactamente iguais à nossa, a outra para o pinhal. A corta-mato, em quinze, vinte minutos, púnhamo-nos na praia deserta e imensa. De resto, estava quase tudo por fazer. Arruamentos, passeios decentes, rede de transportes. Mas era a nossa casa nova, a uns quinze quilómetros de Sines, onde tínhamos vivido durante um ano e picos, no palácio Pidwell. Nos tempos do AL Berto e tudo.
E ali estávamos nós, na véspera de mudar para Santo André. Uma mulher de 25 anos e duas crianças de cinco e seis a quem os padres jesuítas deram as boas vindas, começando logo por nos apresentar à maravilhosa família Santana, que andou connosco ao colo o tempo todo que ainda ali vivemos. Memórias douradas. Os padres Amadeu Pinto – que vou rever um dia, do lado de lá –, e o Manuel Malvar que ainda anda por essa terra alentejana. Duas das pessoas mais generosas que conheci na vida. E a bondade e a alegria dos Santana. A dona Balbina, e os filhos, a Grace, a Angie, e o Jorge. E o pai:
– Está combinado – disse o Pai Santana. – Amanhã venho pendurar-lhes as cortinas e ajudá-la com a mudança. Agora, quando saírem, vou dar conta desse ninho de vespas.
– Não tem medo? – perguntei.
O ninho era enorme e quase fumegava de tanta actividade. Estava exactamente no tecto do alpendre, diante da porta de entrada. Sobre as nossas cabeças.
– Nã. Isto vai lá com fumo.
Eu agradeci, quando o André me puxou pela manga do casaco.
– Mãe! O ninho é casa delas? – Respondi-lhe que sim, mas que não valia a pena preocupar-se porque o senhor Santana ia tratar do assunto.
O meu rapazinho de seis anos abanou a cabeça, verdadeiramente zangado:
– Nós ganhamos uma casa e elas perdem a delas. Isso é injusto.
Senti um baque.
– Oh, mãe – reforçou a Marta que detestava insectos, mas era incapaz de lhes fazer mal. – São seres vivos, como nós.
Respirei fundo e mandei-os para dentro. Duas crianças, e uma lição de sabedoria daquele tamanho. Sozinha, pus-me de cabeça no ar a falar com as vespas. Resumidamente, propus-lhes um pacto de boa vizinhança. Se me picassem a mim, até podia «entender». Mas se umazinha delas que fosse magoasse as minhas crianças, o senhor Santana viria logo tratar do assunto. Não me esqueço também da expressão dele quando lhe participei a nossa decisão.
Entretanto, as vespas nunca picaram ninguém. Nunca entraram, sequer, dentro da nossa casa. Nem elas, nem moscas ou mosquitos ou outros insectos. Suponho que foi a forma que elas encontraram de nos pagar a boa vizinhança mútua que durou o tempo todo em que ainda vivemos em Santo André. Não foi mais do que dois anos.
[Manuela Gonzaga é escritora. Licenciada e mestre em História pela Universidade Nova de Lisboa, membro do Centro de História de Além-Mar (CHAM) da UNL, publicou, entre outros, a biografia de António Variações e a de Maria Adelaide Coelho da Cunha, e uma coleção juvenil, “O Mundo de André” com a chancela do Plano Nacional de Leitura que já vai no 3º titulo. Visite o blog de Manuela Gonzaga em http://www.gonzagamanuela.blogspot.com/]