Por Tiago Fidalgo, líder na agência de viagens The Wanderlust e autor do blog O Mundo na Mão
Fotos: O mundo na mão
Antes de mais, quero realçar que eu e a Joana adoramos a China e em momento algum queremos passar uma imagem negativa do país ou do povo. Este é um texto que tem como único objetivo despertar emoções positivas no leitor.
Talvez o momento mais emocionante da nossa volta ao mundo à Boleia tenha sido chegar à China! Depois de 5 meses de viagem por terra e à boleia, finalmente havíamos chegado à China. Apesar de gostarmos de nos focar nas semelhanças entre os povos, por lá as diferenças eram realçadas só de avistar a fronteira.
Nos meses antecedentes, atravessar os países da Ásia Central, nos quais ficou demarcada a antiga rota da seda, sentimos sempre que as fronteiras ficavam no meio de montes e vales, distantes das cidades, e cingiam-se a um edifício com mesas e guardas muito armados. Contudo, ao chegar à fronteira entre o Cazaquistão e a China (na cidade de Khorgos), percebemos que o mais parecido que havíamos visto até então havia sido um aeroporto moderno – com luzinhas, colaboradores e suficientemente grande para qualquer comum mortal mais distraído se conseguir perder.
Passados 5 meses de viagem as aventuras e histórias para contar já eram mais que muitas, mas a emoção de pisar um novo país, confessamos, nunca fora tão forte – tínhamos chegado à China! À China!! E a China é aquele exemplo que damos em Portugal sempre que queremos dar uma ideia de difícil, longe e diferente.
Naquele dia, depois de passada a fronteira, saímos diretamente no centro da cidade de Khorgos do lado chinês. E, tal como suspeitávamos depois do que acontecera ao atravessar a fronteira, assistimos a um verdadeiro espetáculo, incrédulos: mas em grande escala. Eram prédios altos, luzinhas a piscar em cada esquina e até nos carros, plasmas a passar publicidade e muita gente à nossa volta. Estávamos completamente em êxtase, estávamos mesmo na China e havia tanto para absorver… eram demasiados estímulos de uma só vez. Para ajudar, era a primeira vez que entravamos num pais onde sabíamos que a barreira linguística era enorme, e onde as cinco expressões que sabíamos em mandarim não seriam suficientes para a aventura a que nos tínhamos proposto.
Tínhamos quase 700km para fazer até à cidade onde nos esperava uma couchsurfer para nos acolher naquela noite (ou quando chegássemos). Uma longa jornada. E, fruto da mudança de horário pela mudança de país, havíamos já perdido 2 horas (porque, ainda que imensa, a China só utiliza um único fuso horário em todo o país). Assim, era já tarde para a distância a percorrer nesse dia – mas nada importava, só queríamos aproveitar cada momento.
Depois de imensas aventuras enquanto tentávamos arranjar uma boleia para o nosso destino – Urumqi, continuávamos com o cartão com o nome desta cidade escrito a marcador, com caracteres chineses, em punho e foi só já tarde que parou um senhor. Olhava para o letreiro, falava e gesticulava. E não havia forma de nos entendermos: a barreira linguística começava então a fazer-se sentir. Mas, porque não? Decidimos entrar no carro de qualquer forma, afinal, estávamos na China e, portanto, apanhar uma boleia de certeza que seria qualquer coisa daquele género.
Apesar do sol no céu, estávamos conscientes: a viagem iria levar a noite toda. E durante toda a viagem a palavra que mais nos vinha à cabeça era só uma: diferença. As aplicações da google que não funcionavam, o senhor que parava para dormir mas passados dois minutos voltava à estrada, eu que aceitei o pedido do senhor para conduzir o seu carro e que durante uma hora me vi obrigado a habituar a apitar cada vez que ultrapassava e a ver os outros carros com luzinhas azuis e vermelhas a piscar como se da polícia se tratassem.
E, foi entre estas e tantas outras aventuras, que acabámos por conseguir pedir ao condutor para telefonar à nossa couchsurfer. Aí, percebemos que, uma vez que chegaríamos pela madrugada, teríamos de esperar até às 9h da manhã do dia seguinte para que nos pudesse receber. Estávamos entregues à nossa sorte, mas naquele momento, nada nos preocupava. Aquele, era um dia especial. E só conseguíamos sentir-nos confiantes e felizes.
Relembro que chegámos a Urumqi por voltas das 5h da manhã e o condutor, que sempre se mostrou amável e muito educado, disponível e calmo, fez-nos sentir em segurança entre a nossa excitação. Por gestos, percebemos que nos estava a oferecer o seu carro para que dormíssemos até ao amanhecer: e assim fizemos.
No carro, que ficou estacionado em frente ao que parecia ser uma garagem, dormitámos até o senhor nos acordar e, por gestos, explicar que estava na hora de comer. Os gestos podem significar coisas diferentes dependendo da cultura onde nos inserimos, mas até então estávamos felizes com a nossa forma de comunicação. Assim, seguimos o senhor: em passos largos e rápidos, por dentro de um parque, e sem grande tempo para reflexão, sei que ficámos impressionados com a quantidade de pessoas a fazer exercício físico desde madrugada.
Acabámos então por chegar aquele que seria o lugar onde íamos juntos tomar o pequeno-almoço – pensávamos nós; muito embora na Ásia, em geral, e na China, em particular, a comida, aos olhos de um ocidental, não difere muito de refeição para refeição. Começava então outra aventura. O restaurante era grande e estava vazio e, depois de uma noite longa, segui o senhor até à casa de banho, não mais que para isso mesmo – xixis e mãos lavadas, pensei. Reparei, depois, que o senhor estava muito à vontade naquela que era somente a casa de banho de um local público e que tinha até tomado banho no lavatório, com ajuda de alguidar (e como seria de esperar numa situação destas, acabando por deixar tudo inundado).
Quando encontrei a Joana, não conseguir não comentar que pelo à vontade do senhor era expectável que fosse Ele o dono do restaurante. Intrigados, voltámos então à sala das refeições e lá demos conta que já havia muita gente por ali; e dirigimo-nos os três ao balcão para escolher o que queríamos comer. Apesar da dificuldade de comunicação, escolhemos a nossa refeição dentro dos fritos, caldo doce (porridge) e ovos cozidos e, imaginando que seria hora de almoço, gostámos da comida. Começava então também a aventura de comer com pauzinhos e recusar as colheres por vergonha.
Foi quando entre a espera da comida e o momento em que pegámos no nosso tabuleiro para o levar até à mesa, que avistámos o nosso anfitrião a fazer a barba, com uma máquina elétrica, servindo-se de uma das janelas da sala como espelho. Ali, naquele momento, não restavam dúvidas – só podia ser o dono. Comemos, demos risadas motivadas pela falta de prática em comer com pauzinhos, agradecemos e antes de sair, eis que o senhor se dirige ao balcão para pagar. Ficámos confusos. E, por entre todas as evidencias, não. Não era Ele o proprietário. E concluímos, depois de mais dois meses no país e 7000km à boleia: era simplesmente um chinês a ser chinês, um ser humano inserido na sua cultura e envolto nos seus hábitos, num restaurante no interior da China, numa modesta cidade com 3,5 milhões de pessoas. Porque tudo aquilo que damos como adquirido, certo, intuitivo ou óbvio, além-fronteiras não tem de o ser.
Em mim, a viagem consagra-se como sendo o momento ideal para sair da zona de conforto, em todos os sentidos. E ter novas experiências é o que de melhor nos pode ser proporcionado fora de portas. É desta forma que conseguimos aprender e fazer o transfer e a respetiva reflexão quando nos encontramos de volta à vida sedentária.
É coerente nós sermos preocupados e pessoas conscientes, em casa, e não é menos importante fazermos o mesmo quando saímos de viagem – focarmo-nos na igualdade, conseguirmos valorizar e rirmo-nos do que é diferente, mas acima de tudo, apreciar a diferença e manter os valores de respeito pelas pessoas, pelos animais e pelo meio ambiente: em tudo o que fazemos, por mais mínimo que seja.
É por isso que devemos partilhar as histórias engraçadas de que são feitas estas aventuras, mas também falar dos valores a manter em viagem; o que nos dá força para sermos melhores pessoas e viajantes responsáveis e informados. Esta é uma das grandes aprendizagens que tenho feito ao longo dos últimos anos passados a viajar e esta é a verdadeira história que tenho para partilhar.