Começavam por coisa nenhuma e acabavam bruscamente. Uma espécie de tsunamis emocionais que deixavam a minha pequena amiga – na época com cinco anos – extenuada e a mãe dela sem um pingo de energia. Eram cíclicos, avassaladores e incontroláveis. À falta de melhor, chamava-se-lhes os “ataques de fúria” da Martinha, que de resto era e continua a ser uma menina com muito feitio. Mas a criança explicava:
– Desta vez não sou eu. É o bicho, mãe. É um bicho monstro. Sobe por mim acima e eu fico desta maneira.
Um dia, estávamos as três juntas, perguntei-lhe directamente que coisa era aquela e como é que ela a sentia. Sem dramas, como se falasse de algo exterior a ela própria como a chuva que nos molha acidentalmente, explicou-me que era um bicho monstro que se desenrolava dentro da sua barriga e trepava até à cabeça provocando-lhe as fúrias aterradoras.
Com o riquíssimo acervo mágico de que as crianças usufruem naturalmente, identificava aquelas manifestações que provinham do fundo de si mesma como um corpo estranho, o que lhe permitia tolerá-las, embora com desconforto.
– E o que se pode fazer? – perguntei.
– Não sei – disse ela. E acrescentou – se calhar tenho de ir ao médico, como a mãe já disse.
Uma ideia peregrina cruzou-me a cabeça.
– Pois é melhor. Mas entretanto, porque não prendes o monstro?
– Como?
– Sabes desenhar?
– Adoro desenhar – respondeu.
– Então vamos fazer uma caixa para o guardar lá dentro.
Ela foi imediatamente buscar papel, lápis de várias cores e sentou-se no chão, numa mesa baixa, a desenhar uma espécie de gaiola onde colocou uma figura mais ou menos disforme, com grandes olhos cor de fogo.
– E agora o que fazemos? – perguntou-me quando o desenho ficou pronto.
– Temos de escrever as palavras mágicas – respondi. E por cima da imagem dela coloquei a frase: “Caixa de prender o bicho monstro”.
Após o que fomos escolher uma parede para colocar o desenho. Por decisão da sua autora ficou na sala, e por sugestão minha um pouco acima do sofá, diante da televisão:
– Assim sempre se distrai, mesmo preso – disse-lhe eu.
Demorou muito tempo até a mãe dela me telefonar: o monstro tinha voltado a atacar, e a filha precisava muito de falar comigo. Fui lá a casa inteirar-me dos pormenores, e a meio da conversa, a olhar para o desenho perguntei-lhe pela fechadura. Respondeu:
– Não tem.
– Ora aí está. Vais ter de fazer uma caixa nova, mas desta vez, com uma boa fechadura.
A minha pequena amiga adorava e adora desenhar. E um novo desenho foi fazer companhia ao antigo, só que o colocámos ligeiramente acima do primeiro:
– Assim está mais longe, e vais ver que se esquece de ti.
– Pois é – respondeu ela com uma confiança que me comoveu.
Depois deste, foi preciso fazer apenas mais um desenho. Foi ela própria quem sugeriu acrescentar à terceira gaiola uma fechadura mais forte, e fui eu que lhe perguntei se não seria melhor acrescentar um buraco no topo da caixa, para ele ir à vidinha dele quando se fartasse de estar preso numa folha de papel:
– Essa ideia é mesmo fixe! Mas então vamos pôr o desenho ainda mais próximo do tecto – respondeu-me.
Passaram meses. Anos. Noutro dia perguntei à mãe o que se tinha passado e passaram-se várias coisas. Uma, é que o monstro tinha-se ido embora de vez há muito tempo, para o país dele, e como os desenhos já não eram precisos, numa mudança de casa foram parar à lareira. A outra é que nenhuma delas se tinha voltado a lembrar dele, tal como eu.
[Manuela Gonzaga é escritora. Mestre em História pela Universidade Nova de Lisboa, publicou, entre outros, a biografia de António Variações, a de Maria Adelaide Coelho da Cunha, e uma coleção juvenil, “O Mundo de André”, com a chancela do Plano Nacional de Leitura que já vai no 3º titulo. Visite o blog de Manuela Gonzaga em http://www.gonzagamanuela.blogspot.com/]
Manuela Gonzaga escreve de acordo com a antiga grafia.