Num dos últimos jantares cá em casa, toda a gente contou histórias maravilhosas e mirabolantes. O tempo passou sem se dar por ele, e a certa altura falámos de fé a propósito de curas sem explicação. E de terapias convencionais versus terapias ditas alternativas. Na verdade, todos partilhamos a mesma convicção de que os vários métodos são dignos e bons e quanto mais lucidamente podermos usufruir do que temos ao nosso alcance, melhor. Até porque há respostas espantosas na medicina ocidental que ninguém pode nem deve ignorar. E soluções de prevenção da doença noutras abordagens terapêuticas que não deviam ser ignoradas.
Entre os presentes estava uma cabalista portuguesa que vive em Munique, uma escritora e xamã norte americana de origem filipina recém chegada da Califórnia, um holandês cético mas de mente muito aberta, um alemão e o seu jovem filho, e esta portuguesa. Toda a gente deu o seu contributo e discorremos durante algum tempo sobre o poder imenso da fé, seja qual for o credo a que se aplique.
Mas a história recordada pela amiga cabalista resume tudo de forma esplêndida. Uma vez choveu tanto, mas tanto, mas tanto, que toda a gente teve de ser retirada de uma certa povoação. Todos concordaram, menos um homem que se negou a abandonar a sua casa, dizendo às forças de segurança: «Deus há-de salvar-me».
Na localidade deserta, ficou então o homem a aguardar o auxílio divino enquanto a chuva não parava de cair. E era tanta, mas tanta, que a certa altura ele teve de subir para o telhado da casa, onde indiferente à tempestade, continuou à espera do milagre. Então, a proteção civil voltou para o resgatar, desta vez de barco. Mas o homem manteve a sua a obstinada recusa:
– Deixai-me aqui, pois de nada serve tentarem afastar-me do meu caminho. Deus há-de salvar-me.
Os outros afastaram-se, mas a chuva não parava de cair. A certa altura, um helicóptero sobrevoou o telhado onde o homem continuava a esperar por um milagre. De nada serviram os alertas, os apelos, as exortações e até as ameaças:
– A minha fé está no Senhor! – repetiu o homem, zangado com tanta interferência.
E como a tempestade se adensasse, até o helicóptero teve de afastar-se deixando-o sozinho. Então as águas subiram, e ele acabou por morrer afogado. Quando percebeu que estava realmente morto, o homem ficou furioso e assim muito zangado chegou ao encontro com o Criador. «Onde estavas tu, Senhor? Fui-te sempre fiel. Adorei-te, e cumpri todos os Teus preceitos. E Tu deixaste-me morrer afogado como um cão!».
– És injusto e cego – respondeu Deus – pois fiz tudo para te salvar.
– Tudo?? – repetiu o homem, que continuava muito zangado.
– Enviei a proteção civil evacuar toda a gente, e recusaste-te a acompanhá-los. Mandei-te um barco, e não quiseste saber. Por fim, até te consegui arranjar um helicóptero e mas tu recusaste todo auxílio!! E agora queixas-te de Mim? Homem cego e teimoso!
Nós gostámos todos muitíssimo desta história, que num serão de mil e uma noites foi talvez das preferidas. As outras, não menos interessantes, eram de conteúdo mais pessoal. Logo não necessariamente transmissível.
[Manuela Gonzaga escreve de acordo com a antiga grafia]