Literatura

Tempo dos Milagres: O Jardim dos desafectos

Eu detestava-a porque achava que ela não gostava de mim. Era família, e não, não era minha mãe. Por Manuela Gonzaga
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Por Manuela Gonzaga

Eu detestava-a porque achava que ela não gostava de mim. Era família, e não, não era minha mãe. Em todo o caso, se alguma vez vivi a vertigem do amor virado do avesso, foi ela quem mo ensinou. Um dia soubemos que estava muito doente e passámos a visitá-la com maior assiduidade. Só então comecei a sentir o absurdo imponderável de “odiar” uma mulher de olhos enevoados, com mãos de passarinho, cujo corpo encolhia todos os dias, mas que mesmo a morrer não se queixava de nada, revelando-nos um dia que se sentia quase indigna de tanto conforto e tanto amor à sua volta, quando por este mundo milhões de pessoas estavam a cumprir o mesmo transe tremendo em condições inimagináveis de desamparo e na mais pura solidão.

Quando morreu, e foi muito breve, senti um vazio informe. Ali estava ela, absolutamente inatingível e a sorrir, sem ouvidos para ouvir o que eu lhe queria tanto dizer quando me sentisse suficientemente “grande” para conseguir enfrentar a sua indiferença. Sufocada de espanto, olhava para aquele rosto de olhos fechados, as mãos cruzadas sobre o peito, o cabelo branco a emoldurar o rosto sereno, percebendo que de repente já não existia nada nem ninguém para habitar o memorial de desafetos que construíra em sua homenagem com todas as fibras do meu ressentimento. Afinal, e tal como suspeitara, eu gostava tanto dela e agora era tarde demais para colher uma gota que fosse do amor que lhe tinha. Um abraço sincero, um beijo de alma naquelas mãos quando ainda estavam quentes, teria bastado.
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Foi das lições mais profundas, e a vida tem-me ensinado tantas, que recebi. Depois disso, houve muitas pessoas de quem desgostei no processo de me construir, mas nunca mais admiti por um segundo sequer, carregar na alma e no coração um peso semelhante, se é que lhe posso chamar assim, porque o ódio sendo muito mais pesado do que o amor, é igualmente viciante e exige a mesma paciente dedicação ao ser eleito.

E contudo, vivemos mais do que nunca sob o efeito da exaltação épica e doentia da destruição do “outro”. As mensagens subliminares ou evidentes que passam a toda a hora, sobretudo em meios audiovisuais, sublinham o mérito da violência, a justiça da vingança e a ideia de que odiar e colher os frutos do ódio são privilégios de “herói”. Não são. São venenos que, gota a gota, nos insensibilizam destruindo-nos como seres humanos. O ódio é uma fraqueza ou, quando muito, um recurso imagético de juventude. Quando cultivamos este jardim, cultivamos uma ignorância brutal sobre nós e sobre os outros a quem damos o poder de nos devorarem os sentidos, na cegueira de não entendermos que, se olharmos bem, é o nosso rosto que se esconde por detrás do rosto do outro. Para o melhor e para o pior.

No extremo, essa ignorância fatal e essa dor insone são os mesmos gatilhos que levam um homem a disparar sobre desconhecidos dentro do liceu onde se sentiu marginalizado, ou uma mãe tresloucada a arrastar consigo os filhos para a morte, ou que, na impunidade das guerras, leva também homens comuns, que na vida real são boas pessoas, a sentirem-se no direito de causarem ao outro todo o tipo de horrores, para se limparem do horror que o outro lhes causa, e que, por fim, nunca mais lhes sai da pele.
Não compensa.

Mas se é terra calcinada essa, onde semeamos e cultivamos dedicadamente as agonias do desamor, e se a sua radioactivade só se reverte com amor partilhado, acredito hoje que nem a morte tem o poder de travar o processo, de modo que restabeleci a ponte antiga só para lhe dizer do coração e com toda a sinceridade “eu te amo”. Que esse amor seja partilhado ou não, é-me indiferente. Com o tempo percebi que é do amor que sinto que tenho de prestar contas. O amor que me oferecem é e será sempre um bónus. Sem o qual, confesso, também me seria muito difícil viver.


Manuela Gonzaga é escritora. Mestre em História pela Universidade Nova de Lisboa, publicou, entre outros, a biografia de António Variações, a de Maria Adelaide Coelho da Cunha, e uma coleção juvenil, “O Mundo de André”, com a chancela do Plano Nacional de Leitura que já vai no 3º titulo. Visite o blog de Manuela Gonzaga em http://www.gonzagamanuela.blogspot.com/ ou o Facebook da autora em https://www.facebook.com/manuelagonzaga.

 

[Manuela Gonzaga escreve de acordo com a antiga grafia]

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