Literatura

Tempo dos Milagres: O “Importantómetro”

Ela estava inconsolável e desesperada. Por causa daquela inimiga, a única inimiga da sua vida, viver tornara-se um pesadelo.
Versão para impressão
Por Manuela Gonzaga

Ela estava inconsolável e desesperada. Por causa daquela inimiga, a única inimiga da sua vida, viver tornara-se um pesadelo.
– Ela bate-te?
– Claro que não, se batesse era mais fácil porque eu batia-lhe também. Mas diz mal de mim às minhas amigas, e ficam todas a rir quando eu passo. E diz mal de mim aos rapazes e eles ficam muito sérios a olhar para mim, quando eu passo. Eu odeio ir à escola. Eu odeio a Maria José. A minha vida é um pesadelo.

A situação estava devidamente acompanhada e, a estas explosões, seguiam-se semanas ou dias de grande tranquilidade, em que ir à escola mais do que um imperativo, era um prazer. Mas as relações desta minha familiar, na altura com dez anos, e a tal 'Maria José', cujo destino se cruzara com o seu desde os tempos do jardim infantil e era, de forma pendular, amiga chegada e inimiga do coração, não lhe tornaram a vida fácil e nesta altura as emoções andavam ao rubro.

Estávamos a passar o dia juntas, quando me lembrei de uma ferramentazinha muito útil que poderia servir-lhe nesta eventualidade. Mas primeiro perguntei-lhe se aquela aversão à escola era uma coisa que, na opinião dela, iria durar para sempre. “Não. Só enquanto a Maria José também ali andar”. Alívio. Afinal, faltavam apenas dois meses para as aulas acabarem. Aliás, depois das férias grandes as duas já nem estariam no mesmo estabelecimento de ensino.
-Mas até lá, vai ser um inferno.
-Todos os dias?
-Menos aos fins-de-semana.
-De um a dez, que nota davas a… isso?
-Vinte! -respondeu sem hesitar.

E foi então que lhe perguntei se não queria usar um aparelho que a mim também me tinha dado muito jeito, em tempos que já lá vão. Ela quis saber que aparelho era, se era pesado, se dava nas vistas, e como se chamava. Respondi que era muito maravilhoso, porque ninguém, a não ser o próprio ou a própria, se dava conta dele. Eu até já me tinha esquecido da sua existência. Ela quis saber se o dito aparelho não estaria cheio de pó e emperrado. Eu respondi que a maravilha era essa: o Importantómetro nunca se estragava, nem ficava com pó.
-O… importantómetro?
-Sim. Vamos começar agora a usá-lo. De um a cem qual é a hipótese de a Maria José te estragar o dia durante o mês de Julho?
-Zero. Não nos vamos ver.
-E em Agosto?
-Idem. Onde está o aparelho?
-Estou a afiná-lo. Portanto, a tua vida só está perturbada até meados de Junho, certo?
-Sim.
-Podemos tirar os fins-de-semana? E as noites? E as tardes a partir das quatro horas?
-Sim.
-Então, vamos calibrar a intensidade da influência que a Maria José tem na tua vida, para um calendário mais curto, certo? Vamos acabar com essa história do “para sempre”?

A certa altura, chegamos à conclusão de que, pelo Importantómetro, a importância da Maria José na vida dela era, numa escala de um a cem, num horizonte de quatro meses, e descontados os fins-de-semana, os fins ou mesmo as tardes quase todas, e as noites inteirinhas, bastante reduzida. O seu alcance não atingia, em média, o grau vinte. Nessa altura, ficou claro que o Importantómetro estava já a funcionar. A conversa continuou. Por que razão a Maria José dizia tanto mal dela às amigas?
-Não sei. Porque é estúpida e parece obcecada por mim.
-E porque será isso?
A primeira revelação chegou de surpresa: “porque se preocupa demais comigo? Ahhhhhhhh! Ahahaha”.

As duas armas secretas acompanharam-na no dia seguinte. O Importantómetro reduzira às devidas proporções o peso, até aí esmagador, que Maria José ocupava nos seus quotidianos desde os últimos tempos. O confronto inteligente foi a outra arma. Quando, ao passar pela sua inimiga de estimação, a ouviu criticar os sapatos ou a fita do cabelo, ou outra coisa que usava, voltou-se para ela e disse: “Maria José, porque é que te preocupas tanto com o que faço e digo e visto? Eu nem reparo em ti, vê lá.”

Pela primeira vez, a outra ficou sem palavras. Pior, perdeu o chão. Corou e voltou-lhe as costas. Nessa altura, o Importantómetro baixou os níveis, quase até zero, e os dois meses passaram sem se dar por isso, porque não houve mais drama. Sendo assim, o velho aparelho não voltou a ser necessário e já passaram vários anos. Em todo o caso, o seu comércio é livre. Se alguém desejar levá-lo, be my guest


Manuela Gonzaga é escritora. Mestre em História pela Universidade Nova de Lisboa, publicou, entre outros, a biografia de António Variações, a de Maria Adelaide Coelho da Cunha, e uma coleção juvenil, “O Mundo de André”, com a chancela do Plano Nacional de Leitura que já vai no 3º titulo. Visite o blog de Manuela Gonzaga em http://www.gonzagamanuela.blogspot.com/ ou o Facebook da autora em https://www.facebook.com/manuelagonzaga.

 

[Manuela Gonzaga escreve de acordo com a antiga grafia]

Comentários

comentários

PUB

Live Facebook

Correio do Leitor

Mais recentes

Passatempos

Subscreva a nossa Newsletter!

Receba notícias atualizadas no seu email!
* obrigatório

Pub

Este site utiliza cookies. Ao navegar no site estará a consentir a sua utilização. Saiba mais aqui.

The cookie settings on this website are set to "allow cookies" to give you the best browsing experience possible. If you continue to use this website without changing your cookie settings or you click "Accept" below then you are consenting to this.

Close