Ela estava inconsolável e desesperada. Por causa daquela inimiga, a única inimiga da sua vida, viver tornara-se um pesadelo.
– Ela bate-te?
– Claro que não, se batesse era mais fácil porque eu batia-lhe também. Mas diz mal de mim às minhas amigas, e ficam todas a rir quando eu passo. E diz mal de mim aos rapazes e eles ficam muito sérios a olhar para mim, quando eu passo. Eu odeio ir à escola. Eu odeio a Maria José. A minha vida é um pesadelo.
A situação estava devidamente acompanhada e, a estas explosões, seguiam-se semanas ou dias de grande tranquilidade, em que ir à escola mais do que um imperativo, era um prazer. Mas as relações desta minha familiar, na altura com dez anos, e a tal 'Maria José', cujo destino se cruzara com o seu desde os tempos do jardim infantil e era, de forma pendular, amiga chegada e inimiga do coração, não lhe tornaram a vida fácil e nesta altura as emoções andavam ao rubro.
Estávamos a passar o dia juntas, quando me lembrei de uma ferramentazinha muito útil que poderia servir-lhe nesta eventualidade. Mas primeiro perguntei-lhe se aquela aversão à escola era uma coisa que, na opinião dela, iria durar para sempre. “Não. Só enquanto a Maria José também ali andar”. Alívio. Afinal, faltavam apenas dois meses para as aulas acabarem. Aliás, depois das férias grandes as duas já nem estariam no mesmo estabelecimento de ensino.
-Mas até lá, vai ser um inferno.
-Todos os dias?
-Menos aos fins-de-semana.
-De um a dez, que nota davas a… isso?
-Vinte! -respondeu sem hesitar.
E foi então que lhe perguntei se não queria usar um aparelho que a mim também me tinha dado muito jeito, em tempos que já lá vão. Ela quis saber que aparelho era, se era pesado, se dava nas vistas, e como se chamava. Respondi que era muito maravilhoso, porque ninguém, a não ser o próprio ou a própria, se dava conta dele. Eu até já me tinha esquecido da sua existência. Ela quis saber se o dito aparelho não estaria cheio de pó e emperrado. Eu respondi que a maravilha era essa: o Importantómetro nunca se estragava, nem ficava com pó.
-O… importantómetro?
-Sim. Vamos começar agora a usá-lo. De um a cem qual é a hipótese de a Maria José te estragar o dia durante o mês de Julho?
-Zero. Não nos vamos ver.
-E em Agosto?
-Idem. Onde está o aparelho?
-Estou a afiná-lo. Portanto, a tua vida só está perturbada até meados de Junho, certo?
-Sim.
-Podemos tirar os fins-de-semana? E as noites? E as tardes a partir das quatro horas?
-Sim.
-Então, vamos calibrar a intensidade da influência que a Maria José tem na tua vida, para um calendário mais curto, certo? Vamos acabar com essa história do “para sempre”?
A certa altura, chegamos à conclusão de que, pelo Importantómetro, a importância da Maria José na vida dela era, numa escala de um a cem, num horizonte de quatro meses, e descontados os fins-de-semana, os fins ou mesmo as tardes quase todas, e as noites inteirinhas, bastante reduzida. O seu alcance não atingia, em média, o grau vinte. Nessa altura, ficou claro que o Importantómetro estava já a funcionar. A conversa continuou. Por que razão a Maria José dizia tanto mal dela às amigas?
-Não sei. Porque é estúpida e parece obcecada por mim.
-E porque será isso?
A primeira revelação chegou de surpresa: “porque se preocupa demais comigo? Ahhhhhhhh! Ahahaha”.
As duas armas secretas acompanharam-na no dia seguinte. O Importantómetro reduzira às devidas proporções o peso, até aí esmagador, que Maria José ocupava nos seus quotidianos desde os últimos tempos. O confronto inteligente foi a outra arma. Quando, ao passar pela sua inimiga de estimação, a ouviu criticar os sapatos ou a fita do cabelo, ou outra coisa que usava, voltou-se para ela e disse: “Maria José, porque é que te preocupas tanto com o que faço e digo e visto? Eu nem reparo em ti, vê lá.”
Pela primeira vez, a outra ficou sem palavras. Pior, perdeu o chão. Corou e voltou-lhe as costas. Nessa altura, o Importantómetro baixou os níveis, quase até zero, e os dois meses passaram sem se dar por isso, porque não houve mais drama. Sendo assim, o velho aparelho não voltou a ser necessário e já passaram vários anos. Em todo o caso, o seu comércio é livre. Se alguém desejar levá-lo, be my guest.
[Manuela Gonzaga escreve de acordo com a antiga grafia]