O Fernando, que lia um livro por noite, sabia, e ainda sabe, os números fiscais de todos os clientes da empresa de contabilidade onde trabalhou durante mais de vinte anos, e que, de olhos fechados cita leis e decretos, perdeu a memória. Alimentado, como os poetas de outrora, de café, cigarros e uma avassaladora solidão, foi de urgência para o hospital.
Uma demorada convalescença garantiu-lhe melhoria substancial das condições físicas, mas agora, a espuma dos dias remove diariamente os resíduos de quase tudo o que lhe acontece. Reformado compulsivamente, recolheu a um lar, onde ocupa um pequeno apartamento, limpo, luminoso, e arejado.
A Raquel fugiu para o Continente, com uma filha pequena pela mão. Vivia no interior de uma das Ilhas, e em 38 anos de vida nunca tinha visto o mar. O homem a quem chamava marido, e legalmente o era, providenciou-lhe abundantemente uma vida de tormentos, numa gaiola sem horizontes. De mãos vazias, mas viva, veio ter aqui ao Bairro, e aqui recomeçou a criar raízes.
O Gaspar tinha uma empresa cuja prosperidade emergente ficou em risco quando ele se apaixonou por uma menina que não podia retribuir-lhe na mesma moeda, porque o seu destino estava ligado a um homem mais velho e bastante rico. Doente de paixão, o Gaspar que é jovem e bem-parecido, descurou negócios e saúde, obcecado pela loira, linda, e inacessível princesa do Leste que, muito pragmática, nunca alimentava as suas esperanças de futuro comum.
Eu e estas três pessoas não nos conhecemos para lá do bom-dia, boa-tarde. No cabeleireiro encontro a Raquel, que vai para lá ver televisão e a passar as tardes com a filha, uma miúda inteligentíssima, mas que mexe em tudo e que se agarra ao meu cão aos beijos. Também foi ali que conheci o Gaspar, que a troco do corte de cabelo, se desfazia em lágrimas e desabafos no colo da Maria. Quanto ao Fernando, e desde que foi internado, fui sabendo dele no nosso contabilista.
Há pouco tempo, no contabilista mostraram-me a fotografia do Fernando a sorrir, com uma bela camisa aos quadrados, na sua recém-estreada página no facebook. Perdera aquele seu ar famélico, e ganhara cor e vida. Entretanto, tenho-me cruzado com uma Raquel esplendorosa, que rejuvenesceu e afinal é bonita, e cuja barriga enfunada começou há meses a dar testemunho de novos amores.
No salão, falámos abertamente sobre passados sombrios e futuros de muita esperança e foi também ali que soube que o Gaspar voltou a rir. As três histórias têm o amor como maior denominador comum. A Raquel ama muito e é muito amada por um homem excelente, que assume a filha dela como sua. São nossos vizinhos e ele já me tinha chamado a atenção pela forma carinhosa como trata os animais e muito particularmente o seu pequeno cão que gosta muito de brincar com o nosso grande cão.
O Fernando, cuja vida parecia ter desembocado na mais asséptica solidão, encontrou subitamente o amor, e é retribuído. Aliás, volta e meia já aparece pelo Bairro a visitar os antigos camaradas de trabalho, a quem manda sms divertidos e emails cheios de humor. E o Gaspar, que já não entra no Salão há meses, nem sequer para chorar no colo da Maria, tropeçou nela há pouco tempo, à saída do Metro do Chiado. Estava tão feliz que quase chorou a contar-lhe que a sua princesa eslava, por amor dele, Gaspar, se despediu de vez do homem rico. Agora, só falta o bebé, que aparentemente vem a caminho.
Ouvi estas histórias no mesmo dia cinzento onde nuvens de más notícias pareciam escritas no céu em letras de chumbo, para que as pessoas que não vêm telejornal, como eu, não pudessem ignorar o sentimento comum de catástrofe iminente. Fiquei comovida e exultante. Senti-me abençoada como se os seus protagonistas fossem da minha família – de sangue ou de espírito. O mundo pode estar a cair aos pedaços. Mas para aqueles que amam e são amados, reconstrói-se milagrosamente a cada instante. Tudo o resto é ilusão.
[Manuela Gonzaga escreve de acordo com a antiga grafia]