Dou sempre este texto, que guardo de memória, como referencial. Estava cheio de erros de ortografia. Tinha falhas de concordância. A pontuação era anárquica demais. Mas foi talvez a mais bela carta de amor que li em toda a minha vida. Era o texto que um modesto sapateiro, que vivia perto de Coimbra, submetia à equipa redatorial que coordenava o levantamento das histórias que seriam selecionadas para integrar o programa de televisão Cenas de Um Casamento.
Ele descrevia a sua adorada noiva com a inocência de um apaixonado. Os olhos azuis, a pele luminosa, o falar meigo. E contava que gostava tanto dela, que, quando ela entrava na oficina — onde na altura ele era ainda era pouco mais do que aprendiz –, se virava de costas, corado até à raiz dos cabelos, para ela não sonhar quão indefeso se sentia na sua presença. E como ela insistisse em fazer-lhe perguntas, disfarçava a tremura da voz com palavras bruscas atiradas por cima do ombro.
Doía-lhe tanto a doçura daquele amor, que tudo quanto desejava era conseguir disfarçar o sobressalto mortal do coração embrulhado nas entranhas, só pela simples graça da presença dela. «Então eu tratava-a com maus modos. E ela ficava triste porque era sempre tão querida na maneira como falava comigo.»
Não foi com exatamente com estas palavras, mas com outras mais simples e mais belas que ele narrou, aos desconhecidos que nós éramos, a sua história, porque muito gostaria de contar com a presença da equipa do programa para filmar o tão feliz desenlace.
Tentámos tudo para que o par fosse eleito, mas não reunia condições: faltavam progenitores, e esses eram fundamentais para o modelo de narrativa visual a que obedecia Cenas de Um Casamento — sem grande exagero o programa que lançou a SIC junto do grande público e consagrou uma, por então, pequena produtora, a SP Filmes. Portanto, e uma vez que até falámos com ele por telefone, embora nunca chegássemos a conhecê-lo pessoalmente, agradecemos a inscrição, e passámos adiante.
A verdade é que nunca mais esqueci este sapateiro, que agora, vinte anos depois, já deve ter filhos e o seu próprio negócio. Desejo-o do coração. Infelizmente, nunca fotocopiei a sua lindíssima carta, por uma questão de deontologia, e lamento-o profundamente sempre que me lembro disso. Aquelas palavras porém, ou melhor, a ideia que aquelas palavras vinculavam, nunca mais me abandonou.
E é isso que digo nas palestras sobre escrita, ou nos pequenos cursos que tenho vindo a desenvolver*. Saber escrever é acima de tudo, saber transmitir ideias e emoções. Mais do que técnica, muitíssimo mais do que isso, é abrir o coração, e deixar o sentimento fluir. Erros? Qualquer corretor ortográfico os corrige. Imperfeições? Há excelentes revisores e editores de texto, capazes de o limparem até refulgir.
Mas a verdade, a profunda e intransmissível verdade, só cada um de nós a pode transmitir. E tanto mais refulgente e bela será, quanto maior a sinceridade e o sentimento que a animam. É esse exercício, que é tudo menos simples, mas deve ser de uma rigorosa simplicidade, que representa escrever bem.
Manuela Gonzaga é escritora. Mestre em História pela Universidade Nova de Lisboa, publicou, entre outros, a biografia de António Variações, a de Maria Adelaide Coelho da Cunha, e uma coleção juvenil, “O Mundo de André”, com a chancela do Plano Nacional de Leitura que já vai no 3º titulo. Visite o blog de Manuela Gonzaga em http://www.gonzagamanuela.blogspot.com/
[Manuela Gonzaga escreve de acordo com a antiga grafia]