Nas visitas às Escolas, trago sempre uma ou duas questões que os alunos me colocam e que ficam a fermentar na minha cabeça. Uma vez, um deles perguntou-me quem eram os meus “modelos”, ou autores que marcavam a minha escrita. De imediato, respondi que não tinha, nem nunca tive, a aspiração de escrever, ou falar, ou ser, ou vestir, de acordo com um ideal alheio, porque tentava sempre seguir a minha própria intuição, voz e gosto.
O rapaz, a entrar no esplendor da adolescência, contestou-me com ar trocista: “ah, então já nasceu a saber tudo?”. Não, respondi. De forma alguma. Não sou, ninguém é, uma ilha Só que em vez de modelos, prefiro utilizar a palavra “faróis” ou “luzes de presença”. Tenho e tive muitas, e continuarei a ter. O que não me serve, é a utilização de um pré-fabricado, adaptado de outra pessoa, como horizonte, ou aspiração maior de imitação. Na verdade, em tudo na vida, a inspiração para o que fazemos deve vir de dentro de nós.
A conversa estendeu-se um pouco em torno da ideia da procura da própria voz interior, da única e singular luz própria – que, como criadores que todos somos, todos temos – e as referências e preferências e gostos que modelam o nosso gosto, e que naturalmente vamos procurando e encontrando ao longo do caminho a que chamamos vida.
– Então – insistiu ele – quais são os seus autores preferidos?
Eu nunca sei responder a esta pergunta, porque são muitos e depende do dia, da hora, do estado de espírito e do trabalho que estou a desenvolver. Como seria e sou sempre incapaz de criar uma lista dos cinco livros que teria de levar e só esses, para uma ilha deserta. Então e os outros todos? Essa questão é tão irresolúvel que já tive até pesadelos muito vividos com isto.
Mas a verdade, é que a pergunta deste aluno de que não recordo já o nome, mas sim o rosto, a meio da sala, bem iluminado e cheio de convicções, deixou-me uma semente. Volta e meia, dou por mim a responder-lhe em silêncio.
E sim, tive memórias fundadoras na leitura, como decerto todos nós.
O que me leva aos fundamentos do ser. À infância. Às primeiras letras, aos primeiros encantos e viagens e transfigurações que a leitura não só nos permite como estimula e incentiva. Sem isso seríamos infinitamente mais sós e mais pobres.
E é assim que dou por mim na Floresta dos Lilases. Li-a há eternidades atrás nos Novos Contos de Fadas da Condessa de Ségur. No essencial, há uma menina que está proibida de sair do vasto parque do seu palácio onde tem “tudo” para ser feliz, para o território proibido da floresta dos lilases sobre o qual paira uma maldição. E há uma madrasta que se quer ver livre dela. E um pai, que é um rei, alheio a estes rancores. E um pajem guloso que a troco de um grande cesto cheio de guloseimas, leva a carruagem da princesa – puxada por avestruzes, vejam bem – para a fronteira da floresta.
Aí é muito fácil qualquer pessoa perder-se. A menina colhe o primeiro ramo, que quer oferecer ao pai, mas em breve percebe que as flores que estão mais à frente são muito mais belas. E assim colhendo braçadas de lilases, que abandona para colher novas braçadas ainda mais esplendorosas, dá por si perdida na floresta encantada.
Ali ficará alguns anos, vivendo uma inconcebível e deslumbrante e dolorosa aventura de crescimento. Por fim, depois do desgosto de ter perdido os seus amigos mais queridos, animais falantes, regressa ao palácio do rei, seu pai, no dorso de uma enorme tartaruga, num opressivo silêncio que tem de cumprir rigorosamente sob pena de tudo perder…
Esta narrativa, como todas as histórias de encantar que se prezam, é iniciática. E continua a fazer-se muito presente, agora que o recordo, em certas alturas da minha vida. De modo que se encontrasse agora o rapaz, poderia responder-lhe que os autores que mais marcaram a minha vida de pessoa e escritora, foram os que recolheram as lendas das velhas tradições orais, ou que inventaram outras histórias tão poderosas como essas, e as fixaram em livros que nos habituámos, erradamente do meu ponto de vista, a considerar “literatura juvenil” ou “infantil”. A verdadeira literatura não tem marcos etários.
E a seguir, teria de recordar outros contos. Como a Sereiazinha e o Pinóquio. O Barba Azul e a Casinha de Chocolate. Aladino, Sindbad o marinheiro, a Dama Pé de Cabra, e muitos mais que continuam vivos a iluminar a infância e a vida de uma infinidade de crianças que persistem em continuar vivas, por mais que cresçam e envelheçam os corpos das pessoas crescidas em que acabam todas por se transformar.
Manuela Gonzaga
Manuela Gonzaga é escritora. Mestre em História pela Universidade Nova de Lisboa, publicou, entre outros, a biografia de António Variações, a de Maria Adelaide Coelho da Cunha, e uma coleção juvenil, “O Mundo de André”, com a chancela do Plano Nacional de Leitura que já vai no 3º titulo. Visite o blog de Manuela Gonzaga em http://www.gonzagamanuela.blogspot.com/
[Manuela Gonzaga escreve de acordo com a antiga grafia]