Manuela Gonzaga
De repente, a vida de algumas de elas e de alguns de eles, ganhou nova luz. Uma senhora muito mística, meio italiana meio brasileira, estava a revolucionar a forma como descodificavam o presente à luz de passados que remetiam para outras vidas.
Uma dona de casa, entediada entre afazeres de consumo, filhos a sair porta fora e um marido envolvido com uma das suas jovens assessoras, percebeu que estava a pagar por erros esquecidos. Tinha sido uma grande bailarina aos pés de quem se ajoelhavam tronos e potestades, aristocratas e plebeus. O orgulho embriagara-a e impedira-a de amar como devia ser. Assim, e ao longo desta vida, caminhara para a invisibilidade total. Filhos, marido, amigos e até amigas, estavam progressivamente a deixar de a ver, logo de lhe prestar qualquer atenção. Fazendo curta uma história longa, na actual sensaboria da sua existência ela sentiu-se grande de novo, ganhou um palco imenso e passou a ouvir palmas subliminares.
Não foi a única que a senhora mística resgatou de quotidianos vazios, porque a fama desta correu por Lisboa, Cascais e Oeiras. Levava uma pipa de massa, tinha uma agenda a rebentar pelas costuras, mas todos e todas que a ela recorriam vinham radiantes e confortados. Os casos que me contaram para me convencer a ir lá pôr o meu pezinho, remetiam invariavelmente para a excelência. No bem ou no mal. Havia a grande bailarina, a grande pianista, o grande general que fizera tantas guerras e que agora tinha as empresas todas a falir, a grande pintora, o grande rei, o grande corsário, a grande cortesã. Tinham sido todos gigantescos.
Menos aquela vaga prima minha, que numa proximidade de círculos está entre o segundo e o terceiro, e cuja história entrou directamente para o top das minhas histórias quotidianas dessa época, finais de anos 90 do século XX. Alguém comum às duas trouxe este relato assombroso para o meu primeiro círculo.
Então é assim. A minha vaga prima odiava areia ao ponto de sentir náuseas sempre que entrava numa praia. Os únicos mergulhos da sua vida foram feitos a partir de barcos. Vinte anos de psicanálise não lhe tinham dado pistas. A senhora mística, porém, resolveu-lhe o assunto em duas sessões de terapia regressiva. Ela via-se entalada entre dois pedregulhos enormes, um dos quais lhe prendia as asas. Tentava voar, mas outras pedras mais pequenas tinham-lhe ferido os membros.
Distanciando-se da experiência para a observar de cima, descobriu que tinha sido uma fada, e estava a morrer esmagada num montinho de areia. Chorou muito, sentiu falta de ar, mas conseguiu libertar-se e deixar a fada que ela fora voar outra vez em direcção ao imenso azul. Lindo. A partir de então estava livre da fobia, e passou a ir à praia. Não muito, porque nunca ficou completamente à vontade em qualquer areal.
Perante a história, indubitavelmente maravilhosa, fui uma desmancha-prazeres. O que andava uma fada a fazer à beira mar, de mais a mais sozinha? Não era aquele o território das sereias? Fadas andam sempre juntas em grupos maiores ou menores, pelos bosques e florestas e jardins. Todas as bíblias da Gente Pequena dizem o mesmo. Não obtive resposta. Mas também ninguém me voltou a tentar convencer a ir à tal senhora mística, que entretanto se foi embora.
Um ou dois anos mais tarde, num jantar de amigos em Amesterdão, conheci uma psicóloga que trabalhava com as forças policiais mais duras, aquelas que circulam pelos bas-fonds e andam pelo Red Light District. Ela contou que por vezes, aqueles homenzarrões (ou aquelas mulheraças) gigantescos, fortes e disciplinados, quando entravam no seu consultório desabavam num mar de lágrimas e, sentados no chão, pousavam a cabeça no seu regaço, soluçando como crianças.
Eu tinha-lhe contado a rir a história da fada e dos grãos de areia. E ela contestou-me: “Nestes campos, a verdade e a mentira são meras projecções. Não interessa a semântica, interessam os resultados. E os resultados estão directamente ligados aos sistemas de crença de cada uma. Se soubesses as histórias que eu conto àqueles gigantes e as que eles me contam a mim, para os pôr outra vez de pé…”
– Mas fadas? Grãozinhos de areia? – insisti.
– Funcionou ou não? – contestou ela e sorriu.
Era do Suriname. Morena, minúscula, figura delicada, olhos rasgados. Uma pequena deusa a sarar as feridas das pessoas mais fortes da Holanda que se enrolavam literalmente aos seus pés, ali procurando alívio das dores de quotidianos de muita violência. Disseram-me mais tarde que o trabalho dela como psicóloga na polícia era altamente prestigiado e que todos tinham por ela uma verdadeira adoração. Dutch people… Na eficácia da organização social e ausência de preconceitos, ninguém lhes chega aos calcanhares.
[Manuela Gonzaga é escritora. Mestre em História pela Universidade Nova de Lisboa, publicou, entre outros, a biografia de António Variações, a de Maria Adelaide Coelho da Cunha, e uma coleção juvenil, “O Mundo de André”, com a chancela do Plano Nacional de Leitura que já vai no 3º titulo. Visite o blog de Manuela Gonzaga em http://www.gonzagamanuela.blogspot.com/]
Nota: Manuela Gonzaga escreve de acordo com a antiga grafia.