por Patrícia Maia
Em Maio deste ano, a TIAC apresentou o primeiro relatório sobre a realidade da corrupção em Portugal escrutinando os principais atores públicos e não-estatais – desde o parlamento e do governo, passando pelo Tribunal de Contas, entre outras entidades – com vista à criação de um “Sistema Nacional de Integridade” (SNI) capaz de enfrentar o fenómeno da corrupção de forma sólida e competente. Este relatório integrou um estudo mais vasto, de 25 países europeus, elaborado pela Transparency International, que aponta Portugal, Espanha e Grécia como sendo os países com mais limitações no combate às más práticas, estabelecendo uma ligação entre este fenómeno e a crise financeira.
Em entrevista ao Boas Notícias, Luís de Sousa (na foto), presidente da TIAC e investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, admite que a corrupção mais comum em Portugal é a corrupção tipo cunha. “Os portugueses consideram normal, por exemplo, ligar a uma prima no hospital para conseguirem saltar uma lista de espera que tem 30 pessoas mas não percebem que isso prejudica os cidadãos que não têm acesso a esses contactos privilegiados”, exemplifica.
Embora a cunha e os favorecimentos – categoria em que podem cair outro tipo de 'pequenas aldrabices' como o deputado que dá a morada falsa para receber um subsídio de deslocação – seja o tipo de corrupção mais “banal” no nosso país, o presidente da TIAC sublinha que a corrupção que mais prejudica o funcionamento da sociedade é a alta corrupção política e empresarial.
Ou seja, “aquela que põe os interesses privados à frente do interesse dos cidadãos causando sérios prejuízos ao erário público e que passa, por exemplo, por negócios opacos, despesas ministeriais não orçamentadas, adjudicações de obras sem concurso, derrapagens financeiras em investimentos públicos, financiamentos ilegais de partidos, entre outras situações que resultam num grave défice democrático e financeiro”.
O maior desafio deste tipo de corrupção é que segue, muitas vezes, os trâmites legais, ou seja, fere a ética e o interesse público mas é feita, aparentemente, dentro da lei pelo que a sua condenação em tribunal se torna mais complexa. “Esta corrupção não envolve um envelope cheio de dinheiro mas sim tráfico de influências de alto nível, como acontece com o indivíduo que detém determinado cargo ministerial e que satisfaz alguns interesses privados – como adjudicações de certas obras – que lhe garantem posições favoráveis, mais tarde, em certas empresas”, explica Luís de Sousa.
A impunidade ou a “corrupção sem corruptos”
“Portugal é um país onde há corrupção mas não há corruptos”, lê-se na introdução do relatório da TIAC, numa referência direta ao regime de impunidade que impera na Justiça. O episódio recente em que Cândida Almeida, diretora do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), afirmou, num congresso do PSD, que “os políticos em Portugal não são corruptos”, ilustra bem esta realidade. A afirmação gerou uma onda de indignação entre os portugueses, que não esquecem os negócios obscuros envolvendo partidos e políticos do nosso país que vieram a público.
Há o caso dos submarinos que, na Alemanha, resultou na condenação de diretores da empresa Ferrostaal por suborno a responsáveis governamentais portugueses mas que, em Portugal, não causou nenhuma “vítima”; o caso Somague onde foi provado e condenado o financiamento ilícito de um partido mas cuja multa acabou por ser anulada; Isaltino Morais condenado, em 2009, a sete anos de prisão efetiva e cujos recursos conseguiram adiar a sentença até o caso prescrever em 2011; o caso de Fátima Felgueiras, condenada em 2008 a três crimes de corrupção, no processo “Saco Azul”, que acabou absolvida de todos os crimes, em 2011, pelo Tribunal de Guimarães.
Estes são apenas alguns dos exemplos mais mediáticos onde a corrupção foi além da mera suspeita mas escapou impune. Os números ilustram de forma ainda mais flagrante esta realidade: segundo relata o livro “Corrupção”, da autoria de Luís de Sousa, entre 2004 e 2008 chegaram aos tribunais portugueses mais de 850 casos de corrupção. Deste total apenas 14 resultaram em condenações que, contudo, não foram além da pena de multa.
“A justiça portuguesa não tolera o reformado que roubou arroz no supermercado mas o presidente de câmara que é acusado de subornos de corrupção, de abuso de poder, peculato, nalguns casos acumulando dezenas de crimes, anda anos e anos a fio em recursos que acabam por fazer o processo prescrever”, critica o investigador.
Despertar para a Tolerância Zero
Por outro lado, diz o investigador, “a própria população portuguesa mostra-se tolerante em relação a determinado tipo de corrupção, sobretudo aquela praticada pelo autarca que rouba mas faz”. De acordo com o inquérito “Corrupção e Ética em Democracia: O Caso de Portugal”, realizado em 2006 por Luís de Sousa e João Triães para o CIES-ISCTE e cujos dados foram incluídos no relatório SNI, 64% dos portugueses tolera a corrupção desde que essa produza efeitos benéficos para a população em geral.
“Isto é muito grave… É preciso que haja uma mudança de mentalidade, uma tolerância zero quanto a estes comportamentos, mostrando sobretudo às pessoas que é possível fazer melhor e que, para isso, não é preciso roubar”, sublinha Luís de Sousa.
Nesta mesma linha, o relatório da TIAC aponta o dedo à atuação de entidades como o Tribunal de Contas (TC), que tem a missão de fiscalizar a gestão do dinheiro público. Embora o TC seja descrito “como o órgão que melhor cumpre o seu papel”, a TIAC denuncia a sua “incapacidade de imputação de responsabilidades financeiras aos responsáveis pela má gestão de dinheiros públicos”, apelando a uma maior eficiência nesta área. Talvez as suspeitas levantadas, recentemento, pelo TC em relação a algumas Parcerias Público-Privadas já sejam um reflexo desta pressão exercida pela TIAC.
Medo de denunciar e de julgar
Esta impunidade dos atores da corrupção resulta, segundo Luís de Sousa, de várias razões. A escassez de recursos e a burocracia, por exemplo, tornam a investigação criminal lenta e dificultam a recolha de provas. O facto de muitos dos crimes de corrupção, em Portugal, serem denunciados de forma anónima é uma das situações que dificulta a investigação.
Segundo o mesmo inquérito acima referido,os principais receios dos denunciantes são “a inconsequência da denúncia, o medo de represálias e o medo de ser encarado como o bufo”, três receios que, segundo alguns especialistas, são mais frequentes em países que viveram ditaduras longas e opressivas.
Mas a impunidade está, sobretudo, ligada “à incapacidade da justiça portuguesa em julgar e condenar estes casos”, defende Luís de Sousa para quem, em Portugal, é demasiado “fácil” ser juiz ou procurador. “A tipificação do crime de corrupção em Portugal é idêntica à da Suécia ou à de França, porque é que os outros conseguem resultados e nós não?”, questiona o responsável da TIAC, dando ao mesmo tempo a resposta: “Porque há falta de coragem”.
Por fim, Luís de Sousa aponta o dedo aos partidos políticos que não têm mostrado vontade de “combater efetivamente a corrupção”. “Claro que se mostram contra o problema, do ponto de vista discursivo, mas combatê-lo dentro das suas próprias estruturas – por exemplo a nível de ações disciplinares – isso não”, salienta. Além disso, defende, “as próprias ordens deveriam ter um papel mais ativo”. “Quase todos os casos de corrupção têm advogados à mistura e espanta-me que a Ordem dos Advogados não faça mais a nível disciplinar e preventivo”, salienta.
[Mapa do Index de Perceção da Corrupção elaborado pela Transparency Internacional em 2011]
Compreender, formar e apoiar para prevenir e combater
Um dos pontos de partida da TIAC foi criar um retrato da situação atual da corrupção em Portugal através do relatório do “Sistema Nacional de Integridade”. Este estudo está a servir de base para algumas das ações da TIAC, sobretudo na área da formação, uma vez que o principal objetivo da associação é prevenir mudando comportamentos.
Em Setembro, a associação organizou o primeiro curso livre no âmbito do próprio SNI, que contou com mais de 40 participantes de vários quadrantes: ativistas, funcionários públicos, jornalistas, funcionários de embaixadas, e até uma deputada municipal. “Queremos que as pessoas aprendam a gerir e a prevenir os riscos de maneira a que regressem à sua atividade e questionem o seu funcionamento, implementando, por exemplo, planos de gestão de riscos de corrupção”, explica o investigador.
Embora seja uma formação menos imediata, a TIAC gostaria também de chegar às escolas, por exemplo através da distribuição de um kit escolar que já está a ser pensado: “Há um conjunto de professores que nos contactaram e que se mostram interessados em avançar com este dossier. É importante porque os miúdos vão para casa e corrigem os comportamentos dos pais”, explica Luís de Sousa. Este projeto está, no entanto, condicionado às limitações humanas e financeiras da associação, cujos membros trabalham em regime ‘pro bono’.
Uma outra área de atuação da TIAC é o apoio à denúncia. Através do email provedoria@transparencia.pt, a associação ajuda o cidadão a formular a sua denúncia de uma forma correta e a encaminhá-la para as autoridades. Neste processo, Luís de Sousa confessa que é fundamental que o denunciante forneça a sua identidade, no entanto admite que a TIAC já recebeu “denúncias anónimas que estavam tão bem documentadas – com fotos e documentos – que optámos por encaminhá-las, mesmo assim, para o DCIAP”.
Nesta área de apoio à denúncia, a TIAC elogia, por exemplo, o novo portal de denúncias aberto por parte da PGR, que possibilita ao cidadão conhecer este instrumento ao mesmo tempo que alerta potenciais agentes corruptos para uma maior possibilidade de denúncia, funcionando como um elemento dissuasor.
Por fim, a TIAC aposta em “criar sinergias entre vários grupos de pessoas da sociedade civil que estão a fazer um trabalho muito discreto mas muito importante no combate à corrupção, como é o caso do grupo Má Despesa Pública e da Associação Nacional para o Software Livre (ANSOL) – que criou uma página Pela Transparência das Despesas Públicas (entretanto suspensa) onde foram evidenciados vários contratos do Estado, alguns deles muito flagrantes”.
No futuro, a Transparência e Integridade ambiciona dar continuidade a estes projetos criando uma espécie de portal que “reunirá toda a informação pertinente sobre negócios que envolvam dinheiros públicos, de forma a fazer chegar esses dados a todas as pessoas”, explica Luís de Sousa, admitindo mais uma vez que esse projeto está condicionado pelas limitações financeiras e humanas da TIAC.
Apesar dos desafios, o investigador tem esperança num Portugal mais transparente e acredita que, esta época de crise, é ideal para alertar a sociedade. “As pessoas saíram à rua muito indignadas porque começaram a perceber que lhes foram ao bolso”, explica, considerando este fenómeno natural “uma vez que, quando a corrupção ocorre em momentos de crescimento económico, as pessoas não fazem muitas perguntas mas quando surgem credores e medidas de austeridade, começam a questionar os negócios mais obscuros”.
No fundo, como sugere o relatório SNI, “este período de grande ansiedade que Portugal atravessa” será um teste mas também uma oportunidade para as entidades públicas e privadas e, claro, para o cidadão comum resolverem “o problema da corrupção definindo o seu papel no combate a esse fenómeno”.
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