David é um homem igual a tantos outros. Há cerca de três anos foi “apanhado” pelos percalços da vida, enfrentou problemas psicológicos, e deu consigo nas ruas. Hoje, este homem pensa no futuro e tem uma casa que chama sua. David é um dos 65 (ex)sem-abrigo que o projeto “Casas Primeiro” deu a mão.
A Associação para o Estudo e Integração Psicossocial (AEIP) iniciou o seu trabalho em 1987, com a criação do Centro Comunitário, a primeira estrutura de suporte, na comunidade, para pessoas com doença mental a funcionar diariamente em Portugal. Em 2009, surge o projeto “Casas Primeiro” destinado a pessoas sem-abrigo com problemas de saúde mental, oferecendo apoio na escolha, obtenção e manutenção de uma casa individual, digna e integrada na comunidade.
“O projeto proporciona de imediato o acesso a uma habitação que é individualizada e que é dispersa na cidade de Lisboa, não congregamos as pessoas numa determinada casa ou num determinado espaço da cidade ou bairros sociais. São apartamentos do mercado normal de arrendamento”, explicou ao Boas Notícias, a Presidente da AEIPS, Dra. Teresa Duarte.
Este projeto inovador em Portugal, não só dá a estas pessoas o apoio necessário para se tornarem independentes, como também os responsabiliza, integra e engloba na sociedade. Neste momento, cerca de 10 pessoas do projeto já estão envolvidas em projetos de reabilitação profissional.
As rendam rondam os 350 euros mensais, e cada um dos envolvidos participa com 30 por cento do seu rendimento que pode ser do trabalho, de reformas, do rendimento social de inserção ou do subsidio de desemprego.
“As pessoas contam também com uma equipa de apoio que está disponível 24 horas por dia e que ajudando as pessoas no seu dia-a-dia, tanto na gestão da casa, como para tratar de outras questões que são fundamentais, como a documentação, o acesso aos serviços de saúde, a projetos na área profissional, subsídios, entre outros”, explica Teresa Duarte.
Pode ser uma caminhada longa mas com o acesso a uma casa onde podem tomar banho, fazer a sua comida e descansar sob um tecto, o percurso para a inserção na sociedade torna-se mais fácil. No fundo recuperam a sua estrutura e a sua dignidade.
A integração de David
David, 50 anos, licenciado em História, afirma que esta experiência “está a ser muito boa” e no seu olhar transmite uma sensação de segurança de quem acredita em si todos os dias. Encontramo-lo na AEIPS, junto ao computador onde planeava o seu orçamento mensal: “Agora aprendo a viver com o que tenho, é um dia de cada vez”.
Quando lhe perguntámos o que é que tinha mudado na sua vida, respondeu assertivamente: “tenho uma casa, estou seguro e posso dormir.” Aprendeu a dar valor a pequenas coisas da vida que para alguns de nós são normais. “Tenho um sofá na minha casa, que balouça. Gosto de me sentar lá, fumar o meu cigarro e pensar no meu futuro.”
David enfrentou alguns contratempos. Desde que está no processo de recuperação já teve dois internamentos psiquiátricos. Não desistiu, pelo contrário ainda lhe deu mais força, é como se fosse o colmatar e o “fechar” de algumas feridas “abertas”.
Quando lhe foi atribuída a casa, teve algumas dificuldades. “A principal foi manter-se em casa, fechado em quatro paredes. Depois fiz um esforço, quando começou o calor, fui-me recolhendo à tarde em casa e ia-me entretendo a ver televisão”.
David foi técnico superior numa Biblioteca mas os três anos que passou a dormir no asfalto, ficaram-lhe gravados nos hábitos. “Era difícil não mendigar, mesmo se tinha algum dinheiro no bolso não resistia ao comportamento entranhado de pedir na rua”, confessa. Depois com o passar dos dias superou esse hábito: “Agora se tenho falta de um cigarro, não peço”.
Os seus objetivos a médio prazo são fazer um mestrado em Ciências Documentais. Admite que “ainda tem um pouco de receio, tem medo de falhar, mas sabe que será um dia de cada vez”. Estamos perante um homem que enfrenta os seus problemas e está determinado a alcançar as suas metas.
Quando lhe perguntámos como seria o David daqui a uns anos, retorquiu com um sorriso: “Vejo-me velhinho, com o mestrado completo, vejo-me melhor do que agora”. Mais do que historiador, David é um curioso sobre a história de Portugal. Tem um blog e o último artigo que escreveu foi sobre a implantação da República.
65 pessoas com “Casas Primeiro”
Em dois anos o “Casas Primeiro” já retirou 65 pessoas da rua, atribuindo-lhes uma casa e devolvendo-lhes uma vida com dignidade. Todas estas pessoas têm o acompanhamento de “uma equipa que tem um rácio de um técnico de apoio individual por cada 10 participantes”, refere a Dra. Teresa Duarte.
Esta equipa faz um minímo de seis visitas por mês a casa das pessoas, para apoiarem as questões com a gestão e manutenção da habitação. “A nossa prioridade é que as pessoas se mantenham nas suas casas, que deixem de ser sem-abrigo, mas também que possam aceder a outros serviços”. Segundo a responsável a taxa de permanência das casas é muito elevada, “na ordem dos 90 por cento”.
A diferença da abordagem deste programa para os restantes, é a retirada imediata das ruas dos sem abrigo com doença mental, colocando a casa no centro da solução: “Os serviços da maior parte das associações servem para minorar os efeitos da pessoa sem abrigo, dando-lhes roupa, comida”.
“Para o 'Casas Primeiro' a prioridade é dar o acesso a uma casa. Depois temos outras questões que têm que ser resolvidas, em termos da saúde mental, da saúde física, do acesso ao rendimento, mas isso só se consegue fazer com a pessoa estando em casa”, refere a responsável da associação sublinhando que na rua o sem abrigo não vê nenhuma destas questões como prioritárias, “a sua preocupação é arranjar comida, dormir, não ser maltratada”.
Este projeto conta com o apoio, desde o início, do Instituto de Segurança Social, alguns donativos em equipamentos da empresa General Electrics e também de algumas pessoas particulares.
Beneficios e reconhecimento do “Housing First”
O programa chegou a Portugal pela mão do Prof. Doutor José Ornelas, do Instituto Superior de Psicologia Aplicada e diretor da AEIPS, mas o modelo Housing First já foi testado em várias cidades, tendo surgido primeiro em Nova Iorque e depois noutras cidades nos Estados Unidos. Na Europa, o “Casas Primeiro” foi pioneiro.
Teresa Duarte sublinha que em termos de custo-beneficio, o programa é mais vantajoso: “Não é mais caro que os outros embora se possa ter essa ideia, e permite aos contribuintes poupar dinheiro nas emergências médicas e policiais. Há um conjunto de gastos permanentes que o Estado tem com as pessoas que estão na rua”.
A responsável conclui que a reabilitação é mais do que visível, já que “o facto de estarem numa casa melhora a sua saúde física e mental e começam a pensar em projetos para o futuro.”
O projeto “Casas Primeiro” foi reconhecido, recentemente, com a atribuição do Prémio Gulbenkian Beneficência 2011, no valor de 50 mil euros.
[Artigo sugerido por Leonor Brito e Vítor Fernandes]
Ana Silva