Ciência

Por dentro das lágrimas [Crónica]

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[Foto © Man Ray] [António Piedade é Comunicador de Ciência e Investigador do Centro de Física Computacional da Universidade de Coimbra e publica quinzenalmente uma crónica no Boas Noticias]

Lágrima de Preta

Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
 
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
 
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.
 
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
 
Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.”

 
[António Gedeão, in Máquina de fogo, 1961]

Image and video hosting by TinyPicDe tanto rir, uma lágrima cai na palma da mão de António. Espantado com a gotinha de líquido translúcido na mão, António aproxima-a dos olhos para melhor a contemplar. É uma gotinha que parece repousar suavemente sobre a pele, tão perfeita na sua redondeza. Olha através dela e vê uma miríade de pequenos arco-íris num festival de luz e cor.

“É a luz solar a ser refractada no interior da lágrima e reflectida para os teus olhos.”, diz uma voz familiar. Orientado pelo som, António foca o seu olhar na superfície da lágrima e vê a imagem nela reflectida do seu tio Rómulo, que acaba de chegar. “Olha tio Rómulo, uma lágrima minha na palma da minha mão.”, diz António elevando a mão até à altura do olhar de seu tio.

“Parece uma bola colorida, cheia de arco-íris!”, brinca Rómulo e pergunta. “Sabes de que é feita?”. “De água.”, responde António hesitante, “E são salgadas, as lágrimas.” “Sim.”, confirma o tio Rómulo, “Água (H2O), quase tudo, e cloreto de sódio (NaCl)”. “E nada mais?”, indaga António com ar desconfiado.

“Sabes António, as lágrimas têm propriedades ópticas excepcionais devido a uma mistura complexa de muitos átomos e moléculas que não só a água e o cloreto de sódio.”, explica o tio. “Quantos átomos e moléculas diferentes numa única lágrima?”, pergunta António, curioso a olhar mais de perto para a lágrima que tem na mão.

“Um número astronómico de átomos de oxigénio e hidrogénio; um nada menos de carbono, nitrogénio e enxofre; algumas pitadas de potássio, sódio, cloro, cálcio, ferro e manganésio; vestígios de outros elementos, quanto baste. Enfim, podemos dizer que a tabela periódica dos elementos está muito bem representada numa lágrima”, sublinha o tio.

“Tudo isso numa única lágrima?”, insiste António, “Como é que sabemos isso, como é que conseguimos ver tantos elementos nesta lágrima se ela é assim tão transparente e sem cor?”. “As ciências analíticas, qualitativas e quantitativas, avançaram muito. Os cientistas têm hoje, ao seu dispor, inúmeras técnicas e equipamentos muito sensíveis que são capazes de desvendar, pela análise de uma diminuta amostra de lágrima, a sua composição elementar”, diz Rómulo ao sobrinho.

“Podes começar?”, desafia António. “Em pouco mais de um grama de lágrima, cerca de um mililitro de emoção, e através de espectroscopias, electroforeses e cromatografias, somos capazes de chegar à seguinte observação: para além da água, que pressentimos, encontramos gorduras, proteínas, alguns açúcares, sais e muitos outros compostos com baixos e altos pesos moleculares.”

“Tanta coisa num pedacinho de água? Para quê?”, questiona António espantado. “Sabes António, a lágrima tem como principal função limpar e lubrificar os olhos. Os cientistas descobriram que o líquido lacrimal se dispõe em três camadas sobre o olho. A primeira é rica em mucina, uma proteína ligada a açúcares, que forma um gel cheio de água e que protege a córnea do olho de forma homogénea e transparente à luz visível.”

“E a segunda camada”, interrompe António cheio de curiosidade. “A segunda é uma solução aquosa verdadeira. Contem proteínas como a lisozima, lactoferrina, albumina e outros complexos imunológicos solúveis em água, que atacam micróbios e protegem os olhos de infecções. E é também nesta camada aquosa que encontramos a maioria dos sais, cuja presença permite a regulação da pressão entre o interior e o exterior do olho.”

“E a última, a que está por cima de todas?”, pergunta António atento. “A última camada é feita de óleos, gorduras próprias de lágrima, que criam uma barreira que reduz a evaporação da sua água. Para os olhos não secarem!”. “É como se fosse azeite por cima de uma gotinha de água?”, comparou António. “Sim, mas são outras as gorduras produzidas pelas glândulas de meibómio.” especifica Rómulo.

“E as lágrimas são todas iguais?”, pergunta António introspectivo. “São iguais entre humanos, diferentes entre os vários animais. As do crocodilo têm outras proteínas, óleos e diferentes concentrações de sais.”

“E esta que saltou do meu riso é diferente daquelas que correm em carreiros quando choro?”, indaga António. “Pouca diferença há, pois essas lágrimas estão armazenadas no mesmo saco lacrimal. Quando choras ou ris, os músculos faciais, que modelam a expressão do teu rosto, apertam o saco e assim são expulsas as lágrimas. Mas os cientistas descobriram que algumas substâncias das lágrimas, como a acetilcolina que é um neurotransmissor, variam conforme a emoção. E se estiveres doente, ainda outras diferenças haverá no grupo proteico da albumina.”

“Quer dizer que as lágrimas reflectem a saúde do meu corpo e se estou triste ou contente?”, questiona António desconfiado. “Sim.”, responde Rómulo, com um brilho no olhar. “As lágrimas são impressões bioquímicas de um momento do teu ser. Como estão em contacto com todos os líquidos corporais, pela continuidade do plasma sanguíneo, são transparentes na verdade que contam, se as analisarmos em tubos bem esterilizados, claro está.”
 
“E eu que pensava que as lágrimas eram só água e sais, nada mais!”, exclama António. “Tudo o que hoje sabemos é pouco, comparado com o que amanhã podemos vir a descobrir!”, diz Rómulo ao tocar com um dedo na lágrima na palma da mão do António.

António Piedade

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