Por Manuela Gonzaga
Em Novembro de 1974 o mundo, tal como o conhecera até então, ruiu. Totalmente e por todo o lado. Tinha vindo a Portugal pôr os meus filhos bebés a bom recato, quando descobri duas coisas terríveis. Não havia caminho de regresso a África e eu estava profundamente só. Porém, e apesar de não ter muito dinheiro comigo, trazia um tesouro que, pensava, me abriria caminhos de viver. Uma pasta com artigos assinados por mim ao longo de já quase quatro anos de jornalismo, em Lourenço Marques e em Luanda [1].
Armada com as ferramentas da palavra escrita e com provas dadas de que as sabia usar, dirigi-me a um grande jornal onde, graças à intervenção de amigos consegui uma entrevista com o director. Durou escassos minutos. Com a maior secura, esse homem de quem toda a gente elogiava a generosidade e a grandeza de espírito, pediu-me uns dias para analisar o meu trabalho. Quando voltei à sua presença, não me mandou sequer sentar. Quase sem olhar para mim, devolveu-me os meus artigos e disse: “Você é demasiado nova para escrever tão bem sobre assuntos tão diversos. Nem sequer pode ter a maturidade necessária para isso.”
Fiquei sem palavras, assombrada diante dele. Tinha 24 anos e ainda hoje recordo a sensação da minha cara em chamas como se tivesse sido brutalmente esbofeteada. A dor, porém, era muito pior e doeu durante muito, muito tempo. Em segundos, aquele desconhecido desvalorizava totalmente o meu adorado trabalho e arrasava a minha identidade cultural. Por puro preconceito. Pior, ao fazê-lo nos termos em que o fazia, acusava-me implicitamente, de a troco de favores –obviamente sexuais –, ter conseguido em Moçambique e em Angola quem escrevesse por mim os textos que eu assinava.
Foi nessa altura que naufraguei. O medo, um medo avassalador e irracional, tomou conta de mim. A partir daí, senti-me rodeada de estranhos e de inimigos que falavam a mesma língua que eu, só para me confundir, porque este país, onde tinha nascido e vivido até aos doze anos, e de que tinha recordações tão maravilhosas, não era, afinal, a minha pátria, pois até os que me deveriam ter dado a mão e o colo me tinham desamparado.
[Legenda: Manuela no avião em Moçamedes]
Os meses seguintes, que culminaram no abandono de um emprego na televisão, numa errância disparatada e numa vida junto das praias mais perto do contingente africano –Algarve –, ainda hoje me parecem um sonho. Os meus filhos recordam essa época como umas férias no paraíso carregando dessa aventura ilógica uma alegria que ainda hoje os habita. De certa forma, eu sabia que só assumindo a loucura me conseguiria curar dela. Nunca o quotidiano foi tão irreal como nesse tempo em que, com a simplicidade dos loucos e das crianças, eu pedia a Deus todos os dias um milagre. E todos os dias recebia um.
Julgo que foi por esta altura que me veio à cabeça uma velha fábula da infância que desde então também me acompanha. Era uma vez duas rãs que viviam numa quinta e que, de salto em salto, caíram numa vasilha de leite. Ao fim de pouco tempo, a mais velha desistiu. “Conheço os meus limites. Nunca sairemos daqui.” A mais nova nem lhe respondeu. Nadava, procurando um apoio para saltar, que nunca mais aparecia. E nadando, nadando, nadando, atravessou a noite medonha, sem pensar em mais nada a não ser na urgência de nadar.
De madrugada, um esquivo ponto de apoio surgiu sob as suas patas exaustas. Num arranque, a rã continuou a mexer-se vigorosamente, usando as últimas forças. O ponto de apoio parecia crescer. E crescer. E crescer. A certa altura, conseguiu descansar um pouco sobre ele. Era escorregadio e ela ignorava tudo a seu respeito, mas sabia que dali já podia saltar. E saltou. O dia encontrou-a aos saltos bem longe daquele pesadelo, de volta ao lago.
A rã, de tanto o fustigar com os movimentos, transformara o leite em manteiga.
Eu adoro esta história. Na verdade, durante anos e anos e anos, quando tudo o mais parecia falhar, eu recordava o tempo dos milagres e a fábula das rãs. E mantinha a convicção de que, por mais preconceitos e obstáculos que me surgissem à frente, nada nem ninguém me roubaria jamais a alegria de viver e o direito de escrever.
Não foi preciso esperar pela madrugada para voltar ao jornalismo.
Publicar livros demorou um pouco mais. Felizmente.
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[Manuela Gonzaga é escritora. Licenciada e mestre em História pela Universidade Nova de Lisboa, membro do Centro de História de Além-Mar (CHAM) da UNL, publicou, entre outros, a biografia de António Variações e a de Maria Adelaide Coelho da Cunha, e uma coleção juvenil, “O Mundo de André” com a chancela do Plano Nacional de Leitura que já vai no 3º titulo. Visite o blog de Manuela Gonzaga em http://www.gonzagamanuela.blogspot.com/]