Henrique observa ao microscópio óptico uma gota de sangue. É fantástico o número elevado das células de cor vermelha que dão cor ao sangue. São glóbulos vermelhos, também designados por eritrócitos ou hemácias. Praticamente não consegue observar nenhum outro tipo de célula naquela amostra.
Henrique olha para o quadro interativo na parede da sala de aula e lê que num mililitro de sangue existem entre cerca de 4,5 e 5,5 milhões de glóbulos vermelhos. Ou seja, em dois mililitros de sangue existem mais ou menos o mesmo número de células do que habitantes em Portugal!
Henrique olha de novo para a amostra de sangue através do microscópio. Apesar de cada eritrócito medir cerca de 0,007 milímetros, com a ampliação combinada das lentes oculares e objetivas do microscópio, consegue ver as células com um diâmetro aparente de cerca de 3,5 milímetros. Foca a sua atenção numa delas e observa que o glóbulo vermelho é uma célula sem núcleo. Todo o interior daquelas células em forma de disco bicôncavo parece homogéneo, como se todas as substâncias que no seu interior estivessem igualmente distribuídas.
Henrique regressa com o seu olhar ao quadro interativo e lê, numa legenda sobre o interior do glóbulo vermelho, que o seu citoplasma é constituído maioritariamente por hemoglobina, uma proteína que possui na sua constituição átomos de ferro e que é responsável pelo transporte de oxigénio desde os pulmões até todas as células do corpo.
Quanto tempo demora essa viagem? Quanto tempo é o carrossel sanguíneo, uma volta completa ao corpo? Depende de vários factores, sendo mais determinante o número de vezes que o coração bate e impulsiona o sangue. Num adulto, com uma frequência de 70 batimentos por minuto, um glóbulo vermelho demora cerca de 20 segundos a percorrer a vascularização sanguínea que leva oxigénio desde os pulmões até a um dedo do seu pé e voltar de novo aos pulmões para se libertar do dióxido carbono resultante do funcionamento celular e renovar o seu carregamento oxigenado.
Como uma hemácia vive em média 120 dias, Henrique calcula mentalmente que cada um destes discos celulares passa cerca de 500 mil vezes pelo seu coração até ser substituída por outro glóbulo vermelho gerado na sua medula óssea, num processo designado por eritropoese.
Com tanta volta, Henrique quase que se esquece do motivo principal da observação dos glóbulos vermelhos: a admiração encontrada num artigo publicado na revista Nature, no dia 27 de Janeiro de 2011, no qual investigadores da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, apresentam os resultados da sua investigação sobre ciclos circadianos obtidos em eritrócitos!
Porquê a admiração? Porque até aqui os cientistas ligavam os ritmos circadianos a processos cíclicos de 24 horas envolvendo transcrição de determinados genes. Ora acontece que, como Henrique conseguiu observar, os glóbulos vermelhos não têm núcleo, ou seja são células desprovidas de cromossomas e logo de genes!
O que são ritmos circadianos? São processos fisiológicos celulares, constituindo uma propriedade fundamental das células, existindo quer em bactérias, como as que colonizam o nosso intestino, quer em células humanas com núcleo, com um ritmo de aproximadamente de 24 horas. Constituem uma adaptação que confere vantagem evolutiva pela antecipação ajustada ao relógio solar.
A novidade deste estudo, é o de que os investigadores conseguiram identificar oscilações cíclicas com um período de aproximadamente 24 horas, em reações de oxidação promovidas por proteínas antioxidantes designadas por peroxidoxinas, que existem no interior dos glóbulos vermelhos. Mais interessante ainda é o facto de que estas proteínas, envolvidas na regulação e proteção dos danos causados por stress oxidativo, a que o transporte de oxigénio não é alheio, existem em quase todas as células conhecidas, quer eurcariotas, como as humanas, quer procariotas como as bactérias.
Henrique foca a imagem ampliada de um grupo de hemácias e imagina, divertido, que ouve milhões de relógios a viajar pelo seu corpo, num carrossel finito no espaço, infinito no tempo, sincronizados pela rotação da Terra em torno do seu eixo, numa volta de 24 horas.
António Piedade