por Pedro Tavares, médico de Medicina Geral e Familiar
Quando pensamos em “inovação em Medicina”, pensamos em exames ou tratamentos de última ponta, habitualmente da área cirúrgica ou oncológica. Estas inovações, pelo seu preço e especificidade, localizam-se habitualmente em hospitais centrais, longe do utente “padrão”. É-nos mais difícil pensar em inovações digitais nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) que são, idealmente, o ponto do Sistema Nacional de Saúde (SNS) mais acessível aos utentes. Surgem assim as questões: a inovação digital na saúde está próxima dos utentes? De que maneira influenciam a prática clínica dos que trabalham nos CSP?
Caminho Percorrido
Recuando alguns anos, correndo o risco de parecer arcaico, a grande revolução digital nos CSP deu-se com a introdução do computador na consulta. Aliás: com a obrigação da utilização do computador. Faço esta ressalva pois o computador está hoje presente em todas as instituições de saúde, mas enquanto nos Cuidados de Saúde Secundários (CSS) foi introduzido em maior ou menor grau, nos CSP tornou-se obrigatório. Numa consulta de Medicina Geral e Familiar (MGF), o computador tornou-se o suporte do profissional. Nele se faz o registo da consulta, de forma organizada e parametrizada, tornando a leitura a posteriori mais fácil; se prescrevem exames e medicação e se faz o envio para consultas hospitalares. Pode ser usado para esclarecer dúvidas ou para ajudar a transmitir informação ao utente; se existir uma boa articulação com os CSS, possibilita o acompanhamento do processo do utente nas suas consultas hospitalares. Fora da consulta, facilita a gestão do ficheiro, a planificação de atividades ou a realização de estudos, ao permitir acesso aos dados da comunidade, do ficheiro e dos utentes que estão sob responsabilidade do Médico de Família. Assim, veio substituir os processos clínicos em papel, pesados, muitas vezes ilegíveis e de consulta morosa; atualmente estes processos servem unicamente para arquivar o que não pode ser arquivado (ainda…) no processo eletrónico.
Também o avanço nos Meios Complementares de Diagnóstico e Terapêutica (MCDT) modificou a prática clínica nos CSP. Podemos hoje requisitar nos CSP exames que nos permitem ver o interior do corpo humano usando raios-X ou ultrassons. Estes exames aliás são apelidados de várias formas, mas a nomenclatura que escolhi foi propositada: Diagnóstico E Terapêutica. já que alguns exames, como as endoscopias, também entram no processo terapêutico das patologias identificadas. Esta generalização dos MCDTs permite ao utente ver alguns dos seus problemas diagnosticados e inclusivamente tratados sem ter de esperar por uma consulta hospitalar. Para os profissionais dos CSP, a prática clínica torna-se mais desafiante ao aumentar a nossa responsabilidade, mas também mais gratificante ao permitir-nos dar uma resposta aos problemas nos nossos utentes.
Recentemente foi introduzida a “Receita Sem Papel”. Esta inovação, obrigatória em todas as instituições do SNS desde abril de 2016, assume particular importância na MGF já que é o médico de família o responsável pela gestão da medicação crónica dos seus utentes. Passamos assim de uma situação em que o utente se deslocava duas vezes ao seu Centro de Saúde para renovar a receita (para fazer o pedido e para a levantar) para uma em que tudo pode ser tratado eletronicamente.
Atualidade
Uma das inovações que entrará em vigor nos SNS será o “Exames Sem Papel”: semelhante ao das receitas, insere-se numa iniciativa de retirar o máximo de papel possível na prática clínica dos CSP.
Outra iniciativa seria a facilitação da comunicação entre o utente e o Médico de Família através de telemóvel ou e-mail. Apesar de anunciada com algum impacto na comunicação social, a intenção esfriou depois de rejeição contundente por parte dos profissionais e das estruturas que os representam. Embora a comunicação deva ser facilitada, e os meios eletrónicos possam ser uma ajuda nesse processo, este procedimento não deve ser feito à custa da privacidade e da invasão da esfera pessoal dos profissionais.
Caminhos Futuros
Menos papel, comunicação facilitada, partilha de dados entre os CSP e CSS pela via digital parecem ser os caminhos escolhidos. Outro caminho, que certamente encontraria a aceitação dos profissionais, seria o melhoramento das estruturas já existentes. Menos falhas de sistema (que tanto nos condicionam no dia-a-dia), programa de registo que permita introdução de informação mais diversa e de forma mais rápida ou que possibilite a consulta do processo de forma mais intuitiva são algumas medidas que trariam grandes vantagens para o funcionamento dos CSP.
Balanço Final
Todas estas alterações não vieram sem um custo: grande foco no computador durante a consulta, dificuldade de adaptação dos utentes mais idosos às novas tecnologias e uma confiança cega em MCDTs que também têm as suas falhas são algumas das desvantagens de todo este processo.
Não obstante, é inegável as inovações digitais tornaram melhor a prática clínica nos CSP. Graças a elas podemos hoje diagnosticar e tratar com maior certeza, adquirir conhecimento, e ainda transmitir e partilhar o nosso conhecimento entre pares com maior rapidez e eficácia. Esperemos que este processo se mantenha e que o futuro do Mundo Digital nos traga mais e melhores ferramentas para cuidarmos dos nossos utentes.
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