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Às portas da cidade de Lagos, no Algarve, a arqueóloga Maria João Neves e a antropóloga Maria Teresa Ferreira, que ali trabalhavam desde Janeiro de 2009, depararam-se com um achado único a nível mundial: um dos mais antigos “cemitérios” de escravos africanos alguma vez encontrados.
O achado ocorreu no âmbito de uma escavação arqueológica preventiva, executada pela Dryas Arqueologia – num local destinado à construção de um parque de estacionamento subterrâneo – e abre caminho a uma investigação mais profunda sobre o modo de vida e o tratamento mortuário dado a estas pessoas nos tempos da escravatura.
Numa breve entrevista ao Boas Notícias, Maria João Neves explicou a singularidade desta descoberta e falou da história escondida por trás dela.
Como foi encontrado este “cemitério” de escravos?
Os esqueletos dos escravos africanos que encontrámos em Lagos foram inumados numa lixeira que funcionou entre o século XV e o século XVII. Na realidade, não podemos falar de um verdadeiro cemitério de escravos, porque na maioria dos casos os corpos foram descartados, mas nalguns deles há também sinais de ter havido cuidado na forma de depositar os cadáveres, colocados inclusivamente em posições que evocam os seus cultos de origem africanos.
Além dos esqueletos, encontraram algo mais?
Nesta vasta lixeira, a par dos 155 esqueletos de escravos, também encontrámos muitos vestígios arquológicos – quer cerâmicos, metálic
os ou faunísticos – de que os habitantes de Lagos se desfaziam aqui. Todos estes objetos são especialmente informativos porque nos contam mais sobre o modo de vida, os hábitos, os costumes, as relações económicas e sociais estabelecidas na cidade em época moderna. Por exemplo, foram recolhidos milhares de fragmentos cerâmicos, muitos dos quais de oficinas estrangeiras (sobretudo espanholas e italianas), o que demonstra a vitalidade comercial e económica desta cidade portuária, onde afluíam muitas mercadorias.
De que época datam estes vestígios?
Tendo em conta o contexto arqueológico dos esqueletos, uma vez que foram recuperados em conjunto com outros materiais, deverão ter sido depositados algures entre os séculos XV e XVII.
Existe alguma explicação para os esqueletos se encontrarem neste local específico?
O costume de depositar os escravos em poços – como o que existia naturalmente no lugar da lixeira de Lagos – era habitual e encontra-se documentado em várias fontes históricas. Em Portugal, D. Manuel I lançou mesmo um decreto régio, em 1515, de forma a evitar que os corpos dos escravos fossem abandonados nas ruas, onde eram arrastyados e devorados por cães. Deste modo, e tendo em conta tanto os dados da escavação como a própria História, a explicação para o achado é a existência de uma prática de descarte dos cadáveres dos escravos. Sendo Lagos uma cidade pioneira e que teve grande destaque no tráfico de escravos, a descoberta neste local não é de estranhar.
Qual é o valor desta descoberta?
O valor é enorme, desde logo porque nos dá uma oportunidade inestimável para documentar objetivamente o tratamento na morte que era dado aos escravos enterrados aqui. Mas permite-nos saber muito mais do que isso, até mesmo conhecer as condições precárias de vida durante o cativeiro e traçar perfis biológicos (idade, sexo, estatura e afinidades populacionais) destes indivíduos. Além disso, dá-nos possibilidade de identificar lesões esqueléticas que testemunham a violência, as carências alimentares e as doenças infecciosas. Tudo isto é essencial para discutir o problema da demografia e do recrutamento de escravos.
É um achado único?
Existem, sobretudo no continente e nas ilhas americanas, outros cemitérios escavados de escravos. Porém, o contexto específico deste, que se encontra numa lixeira, e o facto de ser um dos cemitérios mais antigos já descobertos – uma vez que os restantes datam de períodos mais tardios, dos séculos XVII a XIX – tornam-no de facto singular em todo o mundo.
O público em geral pode ter acesso a estes vestígios arqueológicos?
Sim, na verdade, está patente no Mercado de Escravos em Lagos uma pequena exposição onde, partindo do conceito de mercadoria, são apresentados alguns dos achados da lixeira da cidade, exposição essa que foi organizada pela Câmara Municipal de Lagos em parceria com a Dryas e alguns artistas plásticos do Laboratório de Atividades Criativas local.
De que maneira será assinalada esta descoberta?
Em primeiro lugar, está prevista a realização de um memorial no local da responsabilidade do Comité Português da UNESCO da “Rota do Escravo”, salientando a memória do tráfico transatlântico de escravos. Também se prevê a criação de um centro de investigação dedicado ao tema em Lagos, que tenha uma vocação multidisciplinar.
Que outros passos serão dados na pesquisa?
A curto prazo, o mais importante é dar seguimento aos estudos que estamos a realizar em conjunto com investigadores da Universidade de Coimbra, no âmbito de um projeto financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian. Isto porque estes estudos são o primeiro passo para um programa de pesquisa mais amplo e vão permitir aumentar o conhecimento existente acerca do modo de vida e do tratamento mortuário a que estas pessoas foram sujeitas, bem como da própria História do tráfico de escravos africanos.
Por ANA RITA CORREIA/CATARINA FERREIRA
[Artigo sugerido por Maria Manuela Mendes]
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