Há dois anos assinámos o Acordo de Paris. Há um ano, ele entrou em vigor, após um processo recorde de ratificação. Passados dois anos, muitos questionam-se mais uma vez sobre se o processo não sofreria um golpe mortal com a retirada dos Estados Unidos do Acordo. Hoje é possível garantidamente reforçar a ideia de que o processo colocado em movimento pelo Acordo de Paris não tem demonstrado sofrer qualquer atrito por via do negacionismo climático dos sectores extremos da opinião pública que infelizmente ocupam os lugares cimeiros da Administração norte-americana. Os sinais são muito evidentes:
- Nos Estados Unidos a campanha “We Are Still In” com o seu próprio hashtag no Twitter consubstancia-se num conjunto de compromissos estaduais, regionais e mesmo ao nível municipal, com o objectivo de longo prazo de descarbonização e a “ratificação” do Acordo de Paris. Na prática, esses compromissos formais já cobrem mais de metade da população americana.
- O legado das polítcas de clima de Obama está a ser atacado, por exemplo através da reversão do “Clean Power Act” que levaria ao phase-out das centrais em carvão nos Estados Unidos. Mas a verdade é que mesmo com a eleição de Trump, a produção de electricidade a partir de carvão não tem conhecido melhores dias e, pelo contrário, mesmo sem subsídios, a energia renovável continua a crescer nos Estados Unidos
- O mercado de carbono mais credível – quase por antagonismo com a eleição de Trump, o maior estado dos EUA, a Califórnia, realizou uma reforma profunda do seu mercado de carbono, que levará a uma ampliação da cobertura das suas emissões, assim como um aumento da ambição em termos de redução de emissões. A Califórnia anunciou que irá tentar atingir emissões zero em 2050 e que irá fazer o “phase-out” do carvão ainda mais cedo. O poder da Caifórnia, concentrando uma boa parte da indústria de “clean innovation” no mundo, não pode ser descontado.
- O isolamento internacional. Após meses em que os Estados Unidos faziam parte de um trio estranho, com Nicarágua e Síria, dos países signatários da Convenção que não tinham ratificado o Acordo de Paris, os Estados Unidos estão finalmente sozinhos na sua oposição ao tratado. Até a Síria, a braços com a devastação de uma guerra civil, anunciou que irá finalmente ratificar o Acordo de Paris nos próximos meses.
O interessante em tudo isto é a reversão nos últimos anos do discurso sobre as alterações climáticas. O discurso do fardo económico, do catastrofismo climático, da quase inutilidade da acção coletiva (sobretudo depois do desaire negocial que foi a cimeira de Copenhaga em 2009), deu lugar a uma fase diferente. Hoje não se discute a urgência da acção climática – e é sempre importante relembrar que mesmo a mudança de discurso e em alguns casos de política ainda não “resolveram” nada em relação à questão climática. Contudo é hoje incontornável que existe uma transição energética em curso que se irá repercutir muito rapidamente em novas relações sociais e económicas, com impactos em todas as áreas do nosso existir. Toda essa evolução, com implicações na forma como vamos obter a nossa energia, geri-la, distribui-la, como nos iremos movimentar, como iremos financiar a inovação tecnológica, como iremos educar os nossos filhos, terá inevitavelmente como motor a redução de emissões e a necessidade de nos adaptarmos a um clima em mudança.
Vemos essa evolução no crescimento das energias renováveis em que literalmente cada semana traz novas notícias de redução de custos, aumentos de capacidade, recordes de produção. Vemos essa evolução na criação de novos modelos de mobilidade mais eficientes, sejam a mobilidade autónoma, a mobilidade suave, ou a mobilidade partilhada. Iremos muito provavelmente ver essa evolução na criação de novas ferramentas de inovação tecnológica aplicada às transacções financeiras, que irão muito rapidamente suportar a evolução de novas relações económicas em torno de como gerimos e partilhamos a energia que cada vez mais iremos produzir autónomamente. O Acordo de Paris pode ser mudo em relação a estas realidades, mas cumprir com a sua ambição suscita toda essa discussão. O Acordo é por isso uma alavanca de peso para todos estes processos. De outra forma como explicar a presença de Al Gore no final da Web Summit?
E tudo isto, o que tem que ver com o que se discute na COP23 em Bona? Muito, embora seja fácil de perder este fio condutor. O Acordo estrutura um caminho conjunto de países em direcção a uma descarbonização das economias na segunda metade do século. Os países vinculam-se autónomamente a apresentar as suas Contribuições. Foi isso que aconteceu em Paris. O que importa agora é estabelecer exactamente o processo de como contabilizar e verificar essas Contribuições, como fazê-lo de forma transparente e como ligar os planos e estratégias de países, individualmente definidos, com o objectivo global.
2018 é nesse sentido um marco importante: é a data aprazada para um “Balanço Global” (“Global Stocktaking”) em que os países vão ser confrontados com uma análise a ser desenvolvida pelo IPCC – Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, que muito provavelmente irá pronunciar-se pela insuficiência dos compromissos atuais, acentuando a pressão para que os Estados aumentem a sua ambição. É nesse contexto que a participação da sociedade civil, ONG’s ambientais, organizações empresariais se torna tão relevante: uma parte significativa da sociedade civil é hoje ativamente mais ambiciosa do que a maioria dos governos. Esse papel da sociedade civil nunca foi tão reconhecido como agora.