imagem: Livraria Déjà-Lu
Abriu portas em fevereiro de 2015, em Cascais, por iniciativa de Francisca Prieto, mãe de quatro filhos, entre eles, uma menina com trissomia 21 que lhe herdou o nome. A livraria solidária Déjà-Lu assume-se como uma livraria de livros lidos que tem como propósito angariar receitas para a Associação Portuguesa de Portadores de Trissomia 21 (APPT 21) e a Pais 21 – Down Portugal.
“Depois de a minha filha Francisca ter nascido, procurei ajuda no Centro de Desenvolvimento Infantil da APPT 21, o Diferenças, em Lisboa, e deparei-me com um local que funcionava muito bem em termos de acompanhamento destas crianças, com técnicos com excelente expertise mas sem qualquer know how para fazer uma angariação de donativos de forma profissional”, explica a fundadora da Déjà-Lu. Como trabalhava na área de comunicação, marketing e publicidade, ofereceu-se como voluntária para ajudar nesse sentido, começando por sugerir a realização de campanhas em termos de parcerias e de venda de produtos ou serviços.
“Como sempre tive uma situação económica confortável que me permitia pagar as terapias e as consultas, fazia-me muita confusão verificar que nem todos os pais tinham essa possibilidade e não podiam dar o melhor acompanhamento aos filhos. Achei que era quase uma obrigação colocar as minhas horas ao serviço da instituição porque tinha tempo e conhecimento para fazê-lo”, explica Francisca.
Nos primeiros três anos, desenvolveu cartões de Natal para empresas, “numa feroz concorrência à Unicef”, brinca. Por volta de 2011, com a crise económica que se viveu na Europa e que foi muito sentida em Portugal, as verbas anuais eram bem mais curtas e foi necessário equacionar novas possibilidades. Numa banal arrumação em casa, com uma pilha de livros de lado para lhes ser dado um novo destino, Francisca achou que poderia conciliar duas paixões: a sua filha e a leitura. “Os livros são fáceis de armazenar, podem ser enviados por correio, há muita apetência, existem títulos que já não estão no mercado, e achei que faria todo o sentido”, conta. Francisca deu assim alento a um sonho antigo: o de trabalhar numa livraria.
“A verba angariada pela livraria no ano passado permite que todas as crianças com trissomia 21 tenham consultas de desenvolvimento gratuitas no Centro Diferenças”
Numa fase inicial, as vendas realizavam-se online, primeiro com o blog http://dejalu4ds.blogspot.pt/ [onde ainda é possível aceder a uma livraria virtual e encomendar livros] mas também no portal coisas.com e já com pontos de entrega onde as pessoas poderiam doar livros “mas ainda de forma muito residual”.
A certo momento, as pessoas doavam tantos livros e de tal qualidade que o armazenamento ia crescendo rapidamente. “Foi quando começámos a achar que fazia sentido abrir um espaço onde pudéssemos continuar a trabalhar online mas também ter os livros expostos”, explica Francisca. Na ocasião, tinha acabado de abrir o Cidadela Art Artistry com algumas galerias ligadas ao Hotel Pestana e à Câmara Municipal de Cascais. Francisca decidiu ir falar com a pessoa responsável no sentido de tentar arranjar um espaço para a livraria. “O Grupo Pestana foi logo recetivo à ideia, achou uma excelente iniciativa, e acabou por nos ceder um espaço por cima do restaurante com três salas relativamente grandes. Muitas vezes, há jantares de grupo ou de empresas dentro da própria livraria. As pessoas adoram almoçar ou jantar neste espaço que é muito agradável e temos também tardes de leitura, sessões de livros que também funcionam ao jantar… Temos muita animação entre a gastronomia e a leitura, o que acaba por também ser algo muito engraçado”, afirma.
Como ajudar?
Estava dado o pontapé de saída para a livraria física, um local descontraído, em que colaboram cerca de 50 voluntários que dividem o tempo entre a armazenagem dos livros, a venda, os turnos para assegurar os horários, a introdução de títulos no sistema, e pessoas que se disponibilizam a dar o seu tempo livre a esta causa.
Ao longo destes três anos, Francisca tem notado o valor inestimável que os livros têm na vida de algumas pessoas. “Existe uma relação muito afetiva com os mesmos. Normalmente, não gostamos de deitá-los fora. Os voluntários que os doam agradecem-nos imenso e sentem que os livros do avô ou dos pais, que têm uma grande componente emocional, ficam muito bem entregues.” São muito mais do que livros em segunda mão. Afinal, os títulos que as pessoas compram “já fizeram companhia a alguém”, como foca o blog do espaço.
A Déjà-Lu está aberta e 3ª feira a Domingo, das 12h00 às 19h00. A 2ª feira é o dia de descanso, mas se coincidir com um feriado, a livraria abre portas. “As grandes vendas acontecem aos fins de semana e aos feriados”, explica a responsável.
É possível ajudar este projeto através da visita à livraria e da compra de livros, de todos os géneros, “desde a poesia ao tarot”. “Obviamente que os donativos são sempre bem-vindos mas não temos sentido falta dessa generosidade, felizmente. Todos os dias continuamos a ter pessoas a subir as escadas e a mostrarem espanto pelo espaço, visivelmente agradadas porque não conheciam a livraria e não estavam à espera de encontrar um sítio tão grande, tão organizado, com livros tão bons e em tão bom estado”, conta Francisca.
As doações podem ser entregues na própria livraria [Pousada de Cascais – Fortaleza da Cidadela, Av D. Carlos I, 2750-310 Cascais] e no Centro Diferenças [Centro Comercial da Bela Vista, Av. Santo Condestável, Lj 32, Via Central de Chelas, 1900-806 Lisboa]. “Podem ainda ajudar-nos a divulgar o projeto e oferecerem-se como voluntários”, acrescenta a responsável.
Quem visita este espaço “mágico, uma espécie de sótão encantado” pode encontrar uma variedade alargada, inclusive com alguns títulos que já não se encontram disponíveis noutras livrarias. “Agrada-me muito o facto de esta livraria se ter transformado num polo cultural. Dinamizamos encontros e organizamos workshops.”
“Ter este sentimento de contribuir para algo dá algum sentido ao dia a dia e ao meu propósito de vida”, afirma Francisca Prieto
Além de todas estas características, caso decida visitar a Livraria Déjà-Lu, conte com uma arrumação com algum sentido de humor. “Temos desde ‘livros que muito boa gente finge que já leu’ que estão numa caixa, ‘autores que todos os anos, não ganham o Nobel por um triz’, e por aí fora… Escolhemos várias categorias fora do comum e que acabam por divertir quem nos visita.” O objetivo, garante Francisca, é proporcionar uma experiência muito maior do que “apenas” comprar um livro. “Muitas vezes, os clientes saem com o sentimento de que receberam muito mais do que deram.”
No último ano, a livraria angariou 35 mil euros: 30 mil foram entregues à APPT 21, e os restantes cinco mil, à Pais 21 – Down Portugal. “Neste momento, a verba permite que todas as crianças com trissomia 21 tenham consultas de desenvolvimento gratuitas no Centro Diferenças”, explica Francisca. Esta é a parte quantificável da livraria, mas para a fundadora, o valor não mensurável é bastante evidente e fundamental para a comunidade envolvente. “Acabámos por criar um clube, um refúgio, um sítio para as pessoas irem… Temos um número cada vez maior de clientes muito fieis. O que a livraria traz aos voluntários, aos clientes, às entidades envolvidas, é muito maior do que o valor final, sobretudo numa altura em que estamos a assistir ao fecho de muitas livrarias independentes que funcionavam como polos culturais agregadores da comunidade e como pontos de encontro”, defende.
A filha Francisca adora estar na livraria e acaba por ser uma voluntária ao final do dia, durante a semana. “Acabamos por atribuir-lhe algumas tarefas que a fazem sentir importante”, explica a mãe.
Visita de autores internacionais
O facto de se realizar anualmente o Festival Internacional de Cultura no concelho de Cascais, leva ao pedido de cedência do espaço para a realização de entrevistas internacionais. Por esse motivo, Francisca já teve a surpresa de receber na livraria solidária, alguns escritores que admira. Foi o caso de David Grossman que acabou por se demorar e tirar algumas fotografias ao espaço e que fez questão de contribuir com a causa. “No dia seguinte a ter estado cá, tinha o seu último livro, em hebraico, com uma dedicatória que dizia que nos quis oferecer aquele exemplar que o tinha acompanhado na tournée do último ano”, conta.
Outra das histórias foi ainda mais curiosa e envolve um escritor que tem a admiração de Francisca. “O David Lodge esteve cá no ano passado. Explicaram-lhe que projeto era este e quando percebeu que a livraria revertia para uma causa relacionada com trissomia 21, acabou por partilhar que o seu filho tinha síndrome de down. De repente, eu que já era sua fã, acabei a ter uma conversa de pai para mãe. Foi uma das situações mais engraçadas que já me aconteceu na vida”, explica.
De quando em quando, a livraria conta com a participação de padrinhos dedicados, como José António Tenente, Anabela Mota Ribeiro e Isabel Lucas, que dedicam o seu tempo à causa. Todos os sábados de fevereiro de 2017, os clientes tiveram a oportunidade de ser atendidos por quatro autores: Hugo Gonçalves, Nuno Camarneiro, Isabel Figueiredo e Sandro William Junqueira.
Francisca não poderia estar mais satisfeita com esta iniciativa. “Ter este sentimento de contribuir para algo dá algum sentido ao dia a dia e ao meu propósito de vida”, conclui.
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