Mais do que escalar montanhas, ser alpinista é um estilo de vida, uma paixão, uma ambição. É acreditar que se consegue chegar mais longe, ser-se melhor e puxar pelos próprios limites. Portugal tem o seu maior exemplo com o alpinista João Garcia. Ganh
Mais do que escalar montanhas, ser alpinista é um estilo de vida, uma paixão, uma ambição. É acreditar que se consegue chegar mais longe, ser-se melhor e puxar pelos próprios limites. Portugal tem o seu maior exemplo com o alpinista João Garcia. Ganhou reconhecimento público em 1999 quando se tornou no primeiro português a escalar o Evereste, a maior montanha do mundo, sem recurso a oxigénio. A experiência, para além de lhe ter levado o companheiro de escalada, deixou-lhe marcas irreversíveis no corpo mas não abalou a sua convicção de montanhista.Este ano arrebatou mais uma conquista pela qual trabalhava há 17 anos: conquistar o lugar no grupo de 10 pessoas que escalaram os 14 picos mais altos do mundo sem auxílio a oxigénio artificial. Ao Boas Notícias explica como viveu esse momento e dá pistas para o futuro.
Dizem que em termos de equipamento todos os pormenores contam para melhorar a ligeireza com que anda no terreno, como cortar o cabo da escova de dentes para perder 10 gramas… Para ir numa expedição como é que se prepara?
Na preparação de uma expedição há sempre a parte de burocrata e de logística. Tem que se arranjar pedidos de licença, escolher as companhias. Depois cada montanha é um caso e exige preparação física adequada. São muitos anos de experiência acumulados e com o passar do tempo passa-se a ser mais minucioso. O mais ínfimo detalhe pode fazer uma grande diferença no resultado. Cortar o cabo da escova de dentes para perder 10 gramas pode parecer ridículo, mas no resultado final tudo conta.
Paralelamente à tarefa de obter documentos existe ainda a tarefa de dar retorno publicitário aos patrocinadores, neste caso o Millenium BCP. Implica uma panóplia de equipamento para dar essa resposta. Cheguei a um ponto em que metade do que levo são baterias, máquina fotográfica, computador portátil, ligações para satélite para poder transmitir o que se passa. Ter acesso à internet é muito difícil no meio do nada.
O momento alto de uma expedição é chegar ao cume. É esse o objetivo final?
É o que é mais duro. Chegar ao cume é só metade da maratona. Estamos a meio e tenho de me concentrar para o caminho da descida. Depois quando chego ao acampamento começo a editar as imagens para as peças e a enviá-las para documentar a experiência.
Não lhe faz perder parte do gozo essa obrigação de passar a experiência?
Ao escalar montanhas como profissional tenho responsabilidades acrescidas. É aliciante para mim a quantidade de trabalho e diversidade de tarefas envolvidas neste processo. Agrada-me ser o diretor máximo do que estou a fazer, ser um bom gestor de recursos e certificar-me que temos tudo o que é preciso a vários níveis. Alimentação, controlar o glicogénio nas pernas para ter energia, motivar a equipa…
Que qualidades são essenciais para se ser um bom alpinista?
Essencialmente é gostar do que fazemos. Nem tudo são rosas. Como um surfista não estou sempre na crista da onda e disposto a corresponder a todos os chamados. Mas é essa paixão que me leva a superar tudo e arranjar condições para responder à altura. A honestidade também é importante. Saber como se fazem as coisas da forma correta, como por exemplo escalar sem recurso a oxigénio, que exige muita preparação. Também é essencial muito trabalho, para poder partir com a consciência tranquila de que se fez o trabalho de casa. Humildade para se perceber que se é privilegiado. Quando conseguimos atingir o cume, temos de estar cientes que isso é fruto do trabalho de equipa: dos meteorologistas que nos enviam a informação, dos patrocinadores, das pessoas que contactamos a nível local para nos ajudar […]. Mas essencialmente são estes três valores: gostar do que se faz, ser-se honesto e trabalhar muito para o conseguir.
Assume como ética escalar sem recurso a oxigénio. Pode explicar qual a importância? Corre riscos acrescidos em relação aos que o fazem com oxigénio.
Escalar montanhas não é só conquistar um troféu. Há uma base filosófica como em muitos outros desportos. No fundo é um combate: “combater-se a si mesmo é a guerra mais difícil; vencer-se a si mesmo é a vitória mais bela”. Isto é que é bonito. Apenas 10 pessoas conseguiram escalar as 14 montanhas com mais de 8 mil metros sem auxílio de oxigénio artificial, é um facto que impressiona a sociedade civil, os patrocinadores. Mas eu escalo montanhas porque quero, não só para impressionar. Faz sentido para mim. Para exemplificar seria como se na meia maratona a Rosa Mota fizesse metade a correr e a outra metade de lambreta. Era batota. Fazer da maneira certa é importante. Posso também dar o exemplo: vivemos numa democracia em que está estabelecido que a maioria tem razão. 97% das escaladas ao Evereste foram feitas com recurso a oxigénio, apenas 3 por cento não foram. Só porque a maioria faz dessa forma não quer dizer que esteja correto. Sou fiel à minha convicção.
No seu percurso como alpinista qual foi o seu pior momento?
O meu pior momento foi sem dúvida o grande acidente em 1999 no Evereste. Cheguei ao cume mas não regressei bem. Uma escalada só é bem sucedida quando voltamos todos em condições, e esta não correu bem. vim com lesões irreversíveis e o meu companheiro de escalada não voltou.
E o seu melhor momento enquanto alpinista?
Foi a última escalada ao Annapurna, porque representou o culminar de um projeto de 17 anos da minha vida. Ainda por cima, terminei em beleza em apenas cinco dias. São montanhas que normalmente demoram entre cinco a seis semanas a conquistar. Mas optei por uma estratégia diferente ao fazer a aclimatação noutra montanha. Quando lá cheguei, com os meus companheiros de expedição estava bom tempo. Acreditei que devia aproveitar as condições climatéricas e acreditei que era possível, porque havia uma aberta. Parti sozinho para cima e consegui alcançar o acampamento da expedição espanhola, que tinha já partido, em apenas um dia.
Como sente a sua evolução como alpinista. Já atingiu o pico da forma?
Já estou a ficar velho, com 43 anos de idade. Aos 20/30 anos quando escalei o Evereste estava numa curva ascendente, agora já estou numa curva descendente. Com os meus 30 anos atingi o Evereste até aos 8.500 metros com relativa facilidade. Agora tenho cada vez mais lesões e mazelas dos treinos. Mas tenho a experiência que compensa a idade. Tenho muito gosto na parte do treino, faço triatlo, tenho objetivos. Tudo isso me motiva para treinar e não parar. Mas sim, já atingi esse Evereste da minha vida. Ainda quero e tenho capacidade para crescer e fazer mais e melhor como pessoa.
O alpinismo para além de uma paixão é já uma profissão. Quando é que viu que podia fazer do alpinismo a sua vida?
Antes do Evereste já organizava e guiava pessoas na montanha. Tudo o que ganhava de forma honesta com o meu trabalho investia nas minhas próprias expedições. Foi em 2005 que assinei contrato com o Millenium BCP e iniciei a conquista dos picos do mundo. Foi uma forma de acelerar um processo que já tinha iniciado. Até 2005 já tinha escalado seis montanhas à minha custa. Tal como as mulheres, também o meu relógio biológico como atleta não podia esperar, precisava de apoio para acelerar este processo. Assim consegui em vez de uma expedição em cada dois anos, consegui duas num ano. Mas é, como já referi, uma decisão que traz responsabilidades, um trabalho paralelo ao de escalar que é o de fornecer um bom retorno publicitário que agrade às duas partes de forma recíproca.
Como classifica, define o alpinismo em relação a outros desportos?
O alpinismo é um desporto de aventura. Outros desportos têm fatores de segurança assegurados. Um jogador de futebol sabe que fora das quatro linhas tem assistência pronta. No alpinismo no momento a partir de uma certa altitude não há ninguém que nos possa valer. A sociedade cria uma barreira de conforto e segurança que são cada vez mais reconhecidas e valorizadas. O desporto de aventura é o que inclui risco de vida e nos faz sair dessa esfera. Para haver esse risco só pode ser praticado no cume mais alto das montanhas ou nos maiores oceanos ou nas regiões polares. O tema aventura hoje está muito explorado e comercializado. O rappel é anunciado como desporto de aventura, mas não é porque a segurança é controlada. Tem de haver uma barreira psicológica a superar e o alpinismo proporciona isso. Não é de um dia para o outro que estamos preparados para enfrentar este tipo de atividade, de um desporto de aventura.
Qual é a sensação quando consegue atingir o cume? É diferente de montanha para montanha?
Acaba sempre por ser diferente de montanha para montanha. Há montanhas que têm reputação de serem difíceis. Mas há outras que não são conhecidas por isso e que me impressionaram mais. O K2, por exemplo, é conhecido como a mais terrível. Mas a grande expedição da minha vida acabou por ser ao Kangchenjunga, o terceiro cume mais alto. Tem menos 20 metros que o K2 mas teve particularidades de dificuldade técnica na escalada que se revelou mais difícil. As condições em que escalei e o desgaste físico também contribuíram para isso. Ia sozinho até encontrar outro alpinista do Equador e fomos os dois.
Um dos seus livros chama-se “Na mais alta solidão”, mas escalar também é um trabalho de equipa…
É um trabalho de equipa até ao dia de cume. Mas acima dos oito mil metros os outros não podem fazer nada por mim. Aí passamos a estar completamente sozinhos. Pela partilha ao longo do caminho vamos puxando uns pelos outros, mesmo sendo de equipas diferentes de expedições. Mas depois a essa altitude se acontece algum problema é impossível contar com alguém. Estamos tão no limite que mal conseguimos transportar o nosso próprio corpo quanto mais o de outra pessoa.
Já pensou no dia em que vai ter de se reformar? Até quando acha que vai conseguir escalar?
Vou continuar a escalar até ao resto da minha vida. Fui evoluindo de forma progressiva. Como um gráfico ascendente com altos e baixos. Já atingi o pico e agora tenho de me adaptar às minhas capacidades reais. Quando essa altura chegar voltarei às passeatas, às caminhadas fáceis. Para mim o alpinismo não é um desporto, é uma atividade, um estilo de vida.
Qual é a sua próxima meta?
Em breve e a curto prazo irei para os Alpes escalar os 4.000 metros. Vou fazer treino específico, carregar com equipamento às costas. Depois irei para a Bolívia de férias, escolho sempre destinos onde possa escalar também. No final do ano vou a outra montanha. Irei reformular o contrato de patrocínio com o Millenium BCP e quando me sentir em forma vou continuar a abraçar mais desafios que divulgarei a seu tempo. Agora acabei este, mas quero mais. É uma ambição pura o que faço e acredito que é possível fazer algo que nunca foi feito. E tem de ser pensado, não quero ser conotado como alguém que promete e depois não faz.
Ana Margarida Pereira