Eu detestava-a porque achava que ela não gostava de mim. Era família, e não, não era minha mãe. Em todo o caso, se alguma vez vivi a vertigem do amor virado do avesso, foi ela quem mo ensinou. Um dia soubemos que estava muito doente e passámos a visitá-la com maior assiduidade. Só então comecei a sentir o absurdo imponderável de “odiar” uma mulher de olhos enevoados, com mãos de passarinho, cujo corpo encolhia todos os dias, mas que mesmo a morrer não se queixava de nada, revelando-nos um dia que se sentia quase indigna de tanto conforto e tanto amor à sua volta, quando por este mundo milhões de pessoas estavam a cumprir o mesmo transe tremendo em condições inimagináveis de desamparo e na mais pura solidão.
Quando morreu, e foi muito breve, senti um vazio informe. Ali estava ela, absolutamente inatingível e a sorrir, sem ouvidos para ouvir o que eu lhe queria tanto dizer quando me sentisse suficientemente “grande” para conseguir enfrentar a sua indiferença. Sufocada de espanto, olhava para aquele rosto de olhos fechados, as mãos cruzadas sobre o peito, o cabelo branco a emoldurar o rosto sereno, percebendo que de repente já não existia nada nem ninguém para habitar o memorial de desafetos que construíra em sua homenagem com todas as fibras do meu ressentimento. Afinal, e tal como suspeitara, eu gostava tanto dela e agora era tarde demais para colher uma gota que fosse do amor que lhe tinha. Um abraço sincero, um beijo de alma naquelas mãos quando ainda estavam quentes, teria bastado.
Foi das lições mais profundas, e a vida tem-me ensinado tantas, que recebi. Depois disso, houve muitas pessoas de quem desgostei no processo de me construir, mas nunca mais admiti por um segundo sequer, carregar na alma e no coração um peso semelhante, se é que lhe posso chamar assim, porque o ódio sendo muito mais pesado do que o amor, é igualmente viciante e exige a mesma paciente dedicação ao ser eleito.
E contudo, vivemos mais do que nunca sob o efeito da exaltação épica e doentia da destruição do “outro”. As mensagens subliminares ou evidentes que passam a toda a hora, sobretudo em meios audiovisuais, sublinham o mérito da violência, a justiça da vingança e a ideia de que odiar e colher os frutos do ódio são privilégios de “herói”. Não são. São venenos que, gota a gota, nos insensibilizam destruindo-nos como seres humanos. O ódio é uma fraqueza ou, quando muito, um recurso imagético de juventude. Quando cultivamos este jardim, cultivamos uma ignorância brutal sobre nós e sobre os outros a quem damos o poder de nos devorarem os sentidos, na cegueira de não entendermos que, se olharmos bem, é o nosso rosto que se esconde por detrás do rosto do outro. Para o melhor e para o pior.
No extremo, essa ignorância fatal e essa dor insone são os mesmos gatilhos que levam um homem a disparar sobre desconhecidos dentro do liceu onde se sentiu marginalizado, ou uma mãe tresloucada a arrastar consigo os filhos para a morte, ou que, na impunidade das guerras, leva também homens comuns, que na vida real são boas pessoas, a sentirem-se no direito de causarem ao outro todo o tipo de horrores, para se limparem do horror que o outro lhes causa, e que, por fim, nunca mais lhes sai da pele.
Não compensa.
Mas se é terra calcinada essa, onde semeamos e cultivamos dedicadamente as agonias do desamor, e se a sua radioactivade só se reverte com amor partilhado, acredito hoje que nem a morte tem o poder de travar o processo, de modo que restabeleci a ponte antiga só para lhe dizer do coração e com toda a sinceridade “eu te amo”. Que esse amor seja partilhado ou não, é-me indiferente. Com o tempo percebi que é do amor que sinto que tenho de prestar contas. O amor que me oferecem é e será sempre um bónus. Sem o qual, confesso, também me seria muito difícil viver.
[Manuela Gonzaga escreve de acordo com a antiga grafia]