Era uma árvore magnífica, uma torre viva, tronco velhíssimo e copa abundante de um verde musgo. A única criatura vegetal, isolada naquela paisagem lunar. Éramos só nós os três. O homem velho, eu, na altura uma adolescente, e ela. O chão, sob os nossos pés, era irregular, esbranquiçado e duro.
Não guardo memória de como ali cheguei, nem tenho ideia do que estava ali a fazer. A nitidez com que preservo esta memória, porém, mantém-se inalterada com o passar dos anos. O homem velho tinha cabelo branco e pele negra. Disse-me o nome da árvore que, infelizmente, nunca retive. É a única falha na recordação deste encontro breve.
– Ouves? – perguntou-me.
Eu não ouvia nada. O silêncio à nossa volta era quase aterrador.
– Encosta o ouvido.
Eu encostei o meu ouvido ao tronco áspero da árvore enorme, não sem antes ter sacudido as formigas que o cruzavam.
– Ouves? – perguntou de novo.
Eu não ouvia, mas deixei-me ficar encostada, porque sabia que ele me ia fazer a mesma pergunta vezes sem fim, até eu responder afirmativamente. O tempo parou. E foi então que comecei a ouvir. Primeiro um arranhar de intermináveis patas de insecto, o grito maravilhoso de pássaros invisíveis de todas as cores e formas, o sussurro de muitas folhas a ondular ao vento de infinitas paisagens, um delicado ascender de gotas de água vindas de um rio escondido no fundo da terra, um intenso mas tão remoto pulsar de tambores que pareciam todos inventados.
Encostei-me mais ainda e continuei a ouvir a miríade de sons que se desmultiplicavam numa linguagem secreta, que no seu conjunto compunha a mais bela sinfonia que jamais ouvi. Depois a música transformou-se num rugido que ressoou no meu peito como se milhares de elefantes estivessem a morrer ao mesmo tempo trespassados de balas e lanças. Afastei-me. Ouvir a árvore causava-me uma intolerável dor.
– Ouves? – insistiu ele. – Este é o grito da floresta que ressoa em todas as árvores do mundo inteiro quando uma delas sofre o gume do machado, a dentada da serra, a violência do fogo.
Apertei a cabeça com as mãos.
– Não quero ouvir mais nada.
– Então lembra-te. Todas as árvores são irmãs. Todas as árvores falam com todas as árvores que existem sobre o manto da Terra. Guarda esta memória e quando chegar o tempo conta-a, porque se não ouvirem o grito da floresta, os homens acabarão por não ouvir mais do que os seus próprios gritos. De agonia.
Dei por mim a deambular sem sentido no jardim tropical da pequena cidade africana onde vivíamos, molhada até aos ossos pela chuva que caía sobre a terra escaldante que, felizmente, escondia as minhas lágrimas, a sentir-me tão pateta a correr para casa, felizmente perto, por ruas onde a água criava rios caudalosos de uma lama quente e vermelha.
[Manuela Gonzaga é escritora. Licenciada e mestre em História pela Universidade Nova de Lisboa, membro do Centro de História de Além-Mar (CHAM) da UNL, publicou, entre outros, a biografia de António Variações e a de Maria Adelaide Coelho da Cunha, e uma coleção juvenil, “O Mundo de André” com a chancela do Plano Nacional de Leitura que já vai no 3º titulo. Visite o blog de Manuela Gonzaga em http://www.gonzagamanuela.blogspot.com/]