Catolicismo e cristianismo confundiam-se de forma inextrincável e a sua coexistência não era pacífica. Do fio da memória desenrolam-se as vozes iradas dos pregadores que dos púlpitos das igrejas vociferavam ameaças em nome do Deus único e todo-poderoso, que, apesar do seu furor contra o poço de pecado onde nós, insetos humanos, nos encontrávamos a nadar desde que nascíamos até morrer, amava-nos tanto que nos tinha enviado o seu filho único, Nosso Senhor:
– Para nos salvar! E morrer por nós! E ressuscitar do reino dos mortos ao terceiro dia!
Até à minha adolescência sofri demais com a Páscoa. Não pelas ameaças do inferno que nos espreitava constantemente, a todos, mas pelas dores do Supliciado. A coroa de espinhos, as costas maceradas, os pés e as mãos cravados no madeiro, os insultos, os escarros da multidão, a soberana, indizível e sublime grandeza do seu amor por nós, dilaceravam-me de desgosto. E de impotência. E de amor, um amor infantil e sem limites.
Ao mesmo tempo, destroçavam-me de dúvidas. Como é que um pai 'daqueles', omnipotente, omnipresente e omnisciente, a vociferar impropérios contra a nossa miséria pela boca dos pregadores, e a congeminar infernos que, sobretudo a partir de Trento, os clérigos se comprazia em descrever para os pintores o pintarem e nós todos ficarmos avisados do que nos esperava, como é que um pai daqueles, eterno, inatingível e feroz, tinha um filho 'destes'?
O céu era fácil segundo Jesus. Amava-se, e pronto. A Deus sobre todas as coisas, o que já não era tão fácil, e ao próximo como a nós mesmos, o que era muito hermético. Ou como dizia Santo Agostinho, outro santo que de tão santo fazia medo: “ama e faz o que quiseres”. Mas depois havia a cláusula sine qua non, a qual implicava os nossos “inimigos”. Era preciso amá-los e ponto final. E se nos fizessem mal? Era preciso amá-los e ponto final. E …? E, nada. Não havia ses nem 'mas' neste articulado de fé. Exemplo: se o inimigo nos esbofeteia, oferece-se a outra face, e é tão simples como isso.
Que Deus me perdoe, pensava e pensei e quase penso ainda, a outra face o tanas.
Mas então e ao correr do tempo e da memória, outras pequenas histórias, foram-se cruzando com esta. Como a da mulher que confessava ter perdoado ao inimigo que fora o seu companheiro de infortúnio durante tantos anos. E com a mesma voz serena com que me deu as receitas das madalenas que acompanhavam o chazinho da tarde dilatada do meu espanto, explicou-me que não só perdoara como aprendera a amá-lo:
– À distância, claro está!
Um dia, ela a passar a ferro, ele a passar por ali. O encontrão, o insulto, a mão erguida, e a cara de assombro quando o ferro a escaldar se encontrou com a esquina da sua cara, não o cegando por milagre. Ele caiu, e ela caiu-lhe em cima. E à medida que o continuava a agredir com tachos e panelas, cega de um ódio ancestral, o rosto dele dissolveu-se num charco de sangue de onde emergiu a cara escondida do único homem que lhe ensinara a submeter-se a todos os homens que até aí povoaram a sua vida de pesadelo. O pai.
– Foi uma epifania – explicou-me, descrevendo depois os passos muito menos interessantes da sua separação, em termos “amigáveis”, e o encontro com o homem que lhe ensinou a outra face do amor. A verdadeira:
– Porque eu só podia encontrar o amor, depois de me libertar do medo. E enquanto não o conseguisse, todos os homens com quem me envolvia, repetiam o mesmo calvário.
Mas como é que isso se articula com “oferecer a outra face” – perguntei-me anos depois, a tentar refazer o puzzle das minhas dúvidas. E percebi. É no coração que tudo se passa. É ali que vale. E, de uma maneira tortuosa, ela tinha-o conseguido. Mais do que isso, é masoquismo. Ou como dizia o outro, o céu pode esperar?
Manuela Gonzaga é escritora. Mestre em História pela Universidade Nova de Lisboa, publicou, entre outros, a biografia de António Variações, a de Maria Adelaide Coelho da Cunha, e uma coleção juvenil, “O Mundo de André”, com a chancela do Plano Nacional de Leitura que já vai no 3º titulo. Visite o blog de Manuela Gonzaga em http://www.gonzagamanuela.blogspot.com/
[Manuela Gonzaga escreve de acordo com a antiga grafia]