Literatura

Livros: Luzes de presença – Inferno

Não fui imune à onda de descrédito que se abateu sobre este autor desde, creio, a sua primeira obra, O Código da Vinci, quando numa viagem inesperada ao Reino Unido me deparei com este título em casa da minha amiga em Glastonbury.
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Por Manuela Gonzaga

Não fui imune à onda de descrédito que se abateu sobre este autor desde, creio, a sua primeira obra, O Código da Vinci, quando numa viagem inesperada ao Reino Unido me deparei com este título em casa da minha amiga em Glastonbury. Os livros que ela tinha, foram os livros que comecei a consumir. Saltitando entre outros autores/as que não nomeio porque não prenderam a minha atenção, acabei por pegar em Dan Brown por desfastio. E nunca mais consegui largar a história que comecei a ler com a visão do Monte Thor diante da janela do meu quarto, prosseguindo depois a sua leitura privilegiadamente inserida nos locais míticos da maravilhosa cidade, igualmente com uma longa tradição ao ciclo do Rei Artur. 
 
Adorei O Código da Vinci sem reservas, tanto quanto detestei o filme. E, recentemente, mal surgiu o Inferno fiquei na linha da frente para o ler. Duas vantagens à cabeça: a primeira, a antevisão do prazer da sua leitura como um daqueles recreios onde começamos logo a correr à desfilada atrás de uma história, durante a qual visitamos lugares conhecidos ou desconhecidos, mas cujas referências históricas nos fazem soar campainhas. A segunda vantagem foi o impulso que me fez retirar da estante a Divina Comédia, para regressar a esta obra magistral que estabeleceu, para o mundo católico, a geografia do além no que concerne aos múltiplos espaços circulares da condenação eterna. Mas que, obviamente, não se reduz a essa dimensão sombria.
 
Tal como esperava, mergulhei numa história de que consegui separar-me mais, consumindo-a vorazmente em dois ou três dias de lazer total. É literatura de diversão, sem dúvida, de modo que não encontramos densidade psicológica nesta montanha-russa onde o tempo conta ao micro segundo, e os bons, à maneira de James Bond mas sem os seus punhos nem os seus artefactos, lutam contra os maus, neste caso liderados pelo bilionário bioquímico suíço chamado Bertrand Zobris, numa acção vertiginosa que decorre em cidades como Florença, Veneza e Istanbul, sob o pano de fundo de cenários extraordinários, quase todos ligados à História de Arte. 
 
A trama é ilusoriamente simples como todas as tramas bem congeminadas num thriler que se preze. Um homem tem de salvar o mundo de uma maquiavélica congeminação que vai libertar a arma biológica destinada a ceifar vidas, de forma a repor estatisticamente o número de seres humanos num patamar compatível com os recursos do planeta. «O tempo urge. Procura e encontrarás.» – murmura a mulher de cabelos cor de prata a Robert Langdon, simbologista na universidade de Harvard, antes deste acordar num hospital de Florença com a imagem onírica e o eco destas palavras sussurradas pela figura que o olha da outra margem de um rio de águas agitadas e rubras de sangue, numa paisagem infernal. Sedado, amnésico, o professor não sabe onde está, nem tão pouco como foi ali parar. Tão pouco conhece as pessoas que o rodeiam quando emerge daquele «sonho» para a realidade absurda de se encontrar em Florença, Itália, já que a sua última memória o situa nos Estados Unidos. 
 
'O mapa do Inferno' (c.1480-c.1495), de Sandro Botticelli, é um dos elementos chave deste novo livro de Dan Brown

Em seguida, numa sequência de acontecimentos vertiginosa, vê o médico que o assiste ser assassinado à sua frente, e é resgatado do hospital, ainda meio atordoado, por uma jovem médica, Sienna Brooks, que o leva para o seu apartamento, onde, à medida que se vai recompondo do choque, sem contudo recuperar a memória recente, Langdon compreende que pretendem matá-lo. Aliás, e segundo a médica lhe conta, chegou quase desfalecido ao hospital, sem documentos e ferido por uma bala na cabeça, transportando consigo um minúsculo e sinistro artefacto, um tubo metálico, que revela (após desvendado o seu segredo de código) uma mensagem aterradora suportada pela imagem de 'O mapa do Inferno' (c.1480-c.1495), de Sandro Botticelli que materializa em tons sépia, vermelhos e castanhos, a macabra visão de Dante sobre os lugares da eterna condenação. 


“Nada nem ninguém é o que e quem parece ser”
 
Mas o tubo, para além disso, contém um vírus terrífico, congeminado por um cientista louco, que pode vir a eliminar metade da população humana por contágio em progressão geométrica. Um cataclismo apenas comparável à peste negra que ceifou a vida a um terço da população europeia no século XIV: eis o ponto de partida deste thriller, que nos arrasta para um submundo contemporâneo cuja geografia se cruza com a do Inferno, de A Divina Comédia, a imortal obra de Dante Aligheri. A partir daqui, é uma autêntica charada, uma perseguição implacável, onde nada nem ninguém é exactamente o que e quem parece ser, com a excepção da ameaça epidémica, que se mantém sem vacilações. Como antecipar e evitar o desfecho? Como salvar a própria vida e evitar o holocausto da população mundial a que um movimento críptico, o transhumanismo, faz apelo, secundado pela descoberta de um génio louco da bioquímica? Langdon tem uma vantagem sobre os seus perseguidores. O conhecimento de passagens ocultas, e dos segredos escondidos à vista de todos em obras de arte – quadros, fachadas antigas, murais, labirintos, caminhos ocultos, por Florença, Veneza e Istambul. 
 
Como é de se esperar, o final é surpreendente revelando mais segredos e lançando um jacto de luz sobre uma das muitas teorias da conspiração de que se fala por pontas soltas e que Dan Brown reúne de forma magistral dando-lhe corpo consistente e pistas para quem quiser, ir mais longe. Muito mais longe. 
 
Ficha Técnica: BROWN, Dan (2013) – Inferno, trad. Fernanda Oliveira, Ana Lourenço, Tania Ganho, Lisboa, Bertrand Editora. 
 
Contra-indicações: como dizia um amigo meu, um livro que as «tias» todas levam debaixo do braço a caminho da praia é seguramente um livro a não ler. É um argumento respeitável mas preconceituoso. Para quem não se importa de partilhar o mesmo gosto pela aventura com a loura de biquíni diante do mar do Guincho, este tipo de obstáculos nem se colocam. Eu não tenho nada contra biquínis, praias e tias.
 
Para viajar ainda mais: Dante (1998) – A Divina Comédia, trad. Vasco Graça Moura, Lisboa, Círculo de Leitores e The World of Dante.
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Manuela Gonzaga é escritora. Mestre em História pela Universidade Nova de Lisboa, publicou, entre outros, a biografia de António Variações, a de Maria Adelaide Coelho da Cunha, e uma coleção juvenil, “O Mundo de André”, com a chancela do Plano Nacional de Leitura que já vai no 3º titulo. Visite o blog de Manuela Gonzaga em http://www.gonzagamanuela.blogspot.com/ ou o Facebook da autora em https://www.facebook.com/manuelagonzaga.

 

[Manuela Gonzaga escreve de acordo com a antiga grafia]

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